A pandemia, pelas suas limitações, constrangimentos e riscos, implicou um amplo conjunto de reconfigurações individuais e comunitárias, mais circunstanciais do que estruturais. Ansiamos pelo regresso à normalidade normal, ao que tínhamos antes do vírus, ainda que muitos estejam fora dessas cogitações, por via dos impactos negativos da pandemia na sua saúde, nos rendimentos ou nos quadros de quotidiano que tinham conquistado.
Por causa da pandemia e dos confinamentos acelerámos a digitalização das nossas vivências, mas somos confrontados com insuficiências estruturantes que não escondem demasiadas falhas para a ambição enunciada, nos programas políticos e nos posicionamentos de mercado.
Não podemos querer aparentar modernidade e posicionamento face aos consumidores e depois ter serviços de distribuição logística, serviços pós-venda e tratamento dos cidadãos como se os papéis estivessem invertidos e quem compra estivesse a fazer um favor a quem vende. Se é para estar, porque a marca acompanha os consumidores e as dinâmicas do mercado. Então os bens e serviços disponibilizados têm de ter um padrão de qualidade mínimos na relação com o cliente, na superação de percalços a que os consumidores são alheios e na satisfação do cliente.
Não podemos querer parecer modernos, galopantes na transição digital e noutras evoluções próprias de países que resolveram o básico, sem ter em conta essa realidade que afeta milhares de portugueses, sem os pilares essenciais da qualidade de vida.
Não podemos ter empresas a operar no território nacional, com prestação de bens e serviços online, que negligenciam prazos de entrega, telefonemas dos consumidores ou outras distorções reais da presença digital, só porque a logística é miserável, os atendimentos telefónicos não estão configurados para respeitar e resolver ou qualquer outra circunstância modelável se o compromisso for outro.
Em tempo de pandemia como em qualquer momento, não podemos ter serviços do Estado sem capacidade para acolher contactos de cidadãos não configurados nos desafios digitais, do Simplex e dos afins, sem capacidade para serem atendidos presencialmente ou pelo telefone e, ouvidos como espécimes com direitos e com deveres, aliás com direitos, liberdades e garantias.
Não podemos, mas temos. Do Estado às grandes marcas mundiais é um fartar de vilanagem, na geração de indiferença, de desrespeito e de desilusão.
De que vale a ambição dos discursos políticos ou dos posicionamentos de mercado se a realidade desmente a aparência digital de modernidade, arrojo e transformação.
A dúvida é a de sempre (resgatar os passivos, responder ao presente ou preparar o futuro?), mas a incapacidade de assegurar o essencial prejudica fortemente a ambição desmedida e suscita um sentimento de injustiça que mina a confiança nas instituições, nos mercados e nos processos.
Depois de várias décadas de fascismo, de amorfismo e de configuração das mentalidades às graças referenciadas pelos mínimos denominadores. A Democracia transportou e concretizou esperanças básicas de um processo de evolução que é um trabalho contínuo, mas que exige foco. Responder aos passivos estruturais e ter a capacidade de combater as desigualdades, as injustiças e as distorções, enquanto se respondem a desafios de futuro que exigem ação imediata.
O problema é quando há uma manifesta falta de vontade ou de incapacidade para responder aos diversos planos das dinâmicas das comunidades, das necessidades individuais e da afirmação de uma visão sensata para o desenvolvimento do país. O drama é quando parece haver um contágio generalizado das instituições e dos mercados em não assegurarem os mínimos enquanto verberam mais ambições, mais serviços, mais bens e outros superlativos de desfasamento com a realidade.
A reconfiguração pandémica e as suas consequências aconselhariam a que se ajustassem os compromissos de expectativas sociais para o essencial, em vez de se embarcarem em grandes utopias, projetos e ambições, que serão apenas geradoras de desilusão, descontentamento e oferta para os populistas.
Com as narrativas da bazuca e os comportamentos comerciais de alguns dos protagonistas nos mercados reais e digitais, é pouco provável que a pandemia, sob o ponto de vista estrutural, acabe por nos colocar os pés no chão.
E tanto que precisávamos de senso e de sustentabilidade para travar a progressão do contágio da volatilidade, da geometria variável, da falta de vergonha e da inconsistência que vão abrindo caminho para a ingovernabilidade e para os radicalismos populistas.
Era bom que não se desaproveitasse as aprendizagens individuais e comunitárias da pandemia.
Era mesmo bom que o Estado e as marcas comerciais que querem assumir um pleno posicionamento digital não descurassem nenhuma das partes do processo, sempre com as pessoas no centro dos impulsos.
Será pedir demais?
NOTAS FINAIS
A PÉ COXINHO. A 24 de janeiro há eleições para a Presidência da República. É importante votar, porque outros, mesmo querendo, antes de 1974, não o puderam fazer. Dez eleições presidenciais depois descobriram que os prazos são apertados. Apertam agora, em 2021, entre a validação das candidaturas e o voto antecipado, logo, imprimem-se boletins de voto com um cidadão que submeteu a candidatura com meia dúzia de assinaturas em vez das 7.500 da ordem. Isto é do domínio da República das Bananas ou dos Bananas.
A FUGIR O PÉ. O caso da modelação do currículo de José Guerra na candidatura à nova Procuradoria Europeia é um desastre pelo que simboliza e induz nos cidadãos e para a sociedade portuguesa. Infelizmente contribui para dar consistência a alguns esforços individuais para não cumprir as regras, desde logo, a do bom senso. Infelizmente, apesar da veemência das narrativas, proliferam. Não é defeito é feitio, para alguns.
Escreve à segunda-feira