O ano de 2020 foi, sem dúvida, um ano diferente.
Não, em especial, por causa da crise económica, que, sendo dolorosa, não é, infelizmente, novidade para muitos.
O que 2020 trouxe de novo à atenção geral foram a pandemia e, com ela, a imponderabilidade e a força já esquecida da natureza.
De novo, mas já não habituado a isso, o homem – ou seja: a humanidade – sentiu-se impotente ante uma força descomunal que não dominava e, com esforço e dificuldade, dominará a breve prazo.
Elegi mencionar a humanidade e não, simplesmente, o homem, pois cada um dos homens, por si, sabe bem dos imprevistos da vida e da derradeira batalha que, com ela, um dia, travará para inevitavelmente a perder.
A humanidade, porém, como ideia e força coletiva mostra-se perene, renova-se e pensa-se capaz de controlar, quando não mesmo vencer, os imponderáveis da natureza e as suas manifestações mais poderosas e ameaçadoras: aí reside, precisamente, a sua força e a capacidade de otimismo que gera em todos e cada um dos homens.
É verdade que os desastres naturais continuaram e continuam a afetar partes significativas dessa mesma humanidade, mas, em geral, trata-se, quase sempres, de fenómenos locais e circunscritos, que, dada a sua dimensão – mesmo quando enormes e devastadores – até podem ser mostrados e olhados de fora por quem está deles distante e os não sofreu.
Não é assim com a pandemia.
Dada a sua desconhecida duração e imprevisibilidade e, simultaneamente, a sua proximidade e a dimensão global que assumiu em pouco tempo, a humanidade quedou-se estupefacta e fraca ante a natureza, a sua força e o seu mistério.
Mesmo assim, os primeiros tempos da pandemia criaram sentimentos fortes de comunidade e reforçaram, em alguns casos e durante algum tempo, laços de solidariedade que se vinham esbatendo, sempre e sempre mais, por via de uma cultura individualista de forte pendor liberal, que os grandes meios de comunicação se esforçaram – e esforçam – por tornar hegemónica e fazer crer sem alternativa.
Porém, esta espontânea e renovada consciência da importância do pensar e agir coletivamente para bem de todos – mesmo que, necessariamente, com sacrifício do excesso acumulado de alguns – veio, rapidamente, a ser minada.
Todos quantos viram ameaçado o mundo de verdades únicas que alcançaram e solidificaram nos últimos trinta anos mexeram-se – e mexem-se agora – constante e insidiosamente para que, se possível, nada mude.
Hoje pode, assim, assistir-se, de novo, a um bombardear crescente de mensagens intencionalmente desagregadoras de qualquer propósito de procurar resolver, coletiva e organizadamente, os problemas que a pandemia trouxe, revelou ou agravou.
Por isso, a aposta na ciência e na capacidade do poder público para debelar ou minorar a força cega da natureza vêm sendo fustigadas duramente por campanhas dirigidas por aqueles que, precisamente, viram depressa as consequências futuras do nascimento e sedimentação de uma nova corrente fortemente solidária e humanista.
Desmentem-se a efetividade e segurança das vacinas, duvida-se da capacidade dos serviços públicos de saúde – os únicos que verdadeiramente funcionaram ao longo deste ano – para a ministrar a todos; contradizem-se as medidas profiláticas e o poder das autoridades públicas para as impor; questiona-se o primado do Serviço Nacional de Saúde na resolução dos problemas sanitários que afetam a todos por igual; contesta-se, enfim, tudo o que pareça ser uma organização política e social dirigida, no essencial, à realização do bem comum e não, unicamente, ao lucro.
Contesta-se, por isso e de várias formas – umas teóricas, outras mais práticas e subliminares – a força solidária e humanista que emana da Constituição.
Por tudo isso e porque, para a larga maioria, importa que 2021 possa ser um ano melhor, há que continuar a lutar para que se cumpra e faça cumprir a Constituição e, assim, o bem comum.