A Hedda Tesman chamou Henrik Ibsen Hedda Gabler. “A minha intenção em dar-lhe este título era indicar que Hedda como personalidade deve ser vista mais como filha do seu pai do que como mulher do seu marido”, escreveu Ibsen sobre a peça Hedda Gabler. Texto escrito em 1890 e levado à cena pela primeira vez em Munique no ano seguinte, com uma mulher ao centro: Hedda Tesman, como se apresenta no regresso a Oslo após uma fastidiosa viagem de núpcias de seis meses passada entre arquivos e bibliotecas, por força da ocupação do marido, às voltas com o seu futuro livro sobre o artesanato doméstico na Idade Média. Será esse o seu destino: enfastiar-se na mansão que foi na verdade a razão do seu casamento. Que outra saída para uma mulher que não acredita nem em amor nem em infidelidades, que de seu pai herdou nada exceto duas armas?
Hedda guarda um segredo, guardará vários, e foi Hedda que Bernardo Beja escolheu para esta sua estreia na encenação (entre ontem e o próximo dia 30 de dezembro em cena no Salão Macau do Museu do Oriente, em Lisboa), entre um grupo de amigos que conheceu na Escola Superior de Teatro e Cinema, onde se formou em 2018. A este grupo, que ao jovem encenador junta um punhado de promissores atores, chama, agora que estreiam o primeiro espetáculo em conjunto, uma “protocompanhia”. “Andávamos para fazer isto já há um tempo. Eles pressionavam-me mas não me sentia pronto e agora, no meio disto [da pandemia], concretizámos. É uma peça muitas vezes adaptada à atualidade, nós decidimos fazer uma coisa mista. Os corpos são corpos de 2020, obviamente, mas tentámos manter-nos fiéis ao texto e a esta formalidade toda de classes sociais que já não temos”.
Ao início do primeiro ato é então uma tradicional Hedda Gabler que se espera. Mas não será essa que afinal teremos. “O texto é belíssimo, foi um texto que nos passou pelas mãos na escola, os professores falam dele com algum distanciamento – é um bocadinho melodramático e há outros textos do Ibsen que são mais políticos, apesar de muitos teóricos defenderem que este texto é muito feminista”. Para Bernardo Beja, Hedda poderia até ser uma personagem sem género. “O que fizemos foi aproveitar toda a psicologia que poderíamos ter numa protagonista feminina e adensar a personagem o mais possível, mas acho que a Hedda poderia ser de qualquer género. Creio que [o texto] tem mais a ver com a identidade, a energia e a forma como ela olha o mundo”.
Sobre o texto, “muito concreto”, com “poucas brechas para se desenhar por fora”, sem “muito por onde inventar, a não ser na dramaturgia”, muniram-se dele, até na sua ausência. A Bertha, a criada, são suprimidas as falas. “Da forma como está escrita é uma personagem absolutamente secundária. Aqui, quisemos torná-la o ponto de empatia com a protagonista. Uma vez que a protagonista manipula e joga com todas as personagens em campo, a criada poderia ser o nosso elo de ligação e poderia estar permanentemente em cena. Com o distanciamento que as falas dela implicavam, tornámo-la silenciosa. E a partir daí a Ana Catarina [Santos] também foi construindo um desenho de cena que ia de encontro a este afunilamento e desta passagem de uma coisa realista para uma coisa cada vez mais fora daqui. A conclusão foi mais ou menos esta: uma décalage muito grande entre o caminho deles dentro da estética que está desenhada para os outros e para ela”.
Mas também para as outras personagens essa estética se vai moldando. “Pela forma como o texto está escrito, poderíamos fazer tudo à medida do primeiro ato. Acho é que as cenas não iam ter tanta intensidade com toda a sujidade que, por assim dizer, o realismo implica. Portanto, a cada ato que passa, o desenho de cena afunila. Começamos num desenho e acabamos com os corpos todos parados. As marcações são cada vez mais cerradas, há cada vez menos focos, menos contracena direta. É um afunilar numa espécie de caminhar para o abismo”.
No final, Hedda, Jørgen Tesman, a tia (que Ibsen criou provinciana e a que Bernardo Beja deu mais do que um sotaque ao entregar-lhe o dialeto barranquenho), Thea, o assessor Brack, Ejlert Løvborg e Bertha, a criada omnipresente que a dada altura seremos nós, todos eles como num quadro para o quarto ato que, a passo cada vez mais acelerado, se precipita em direção ao apoteótico final. Seis personagens entrando e saindo de cena imóveis, como num retrato de grupo, assistirão sem assistir todos eles ao derradeiro gesto de libertação de Hedda. Como dizia não Ibsen, Chekhov, nunca se leva uma arma para palco se não for para ser disparada. “O desenho de cena caminha para uma espécie de disciplina que se concentra no texto e no foco e não tanto numa espécie de dispersão realista do que pode estar a acontecer. Porque é muito claro o que está a acontecer”.