Portugal é um país em que o parlamentarismo sempre foi objeto da reserva mental de muitos. Entre os populistas para quem bastaria um por partido para que a coisa funcionasse, alguém que mandasse por eles, ainda que escolhido para um mandato, de preferência pelas elites de Lisboa, porque na linguagem popular “são muitos e não fazem nada”; e os derrotistas em que está sempre tudo mal, há toda uma realidade democrática, plural e dinâmica que não conta com nenhuma complacência pedagógica dos media e da população. O problema não é de número é de foco, de sintonia com a realidade do país, com o bom senso e com as dinâmicas que importam para responder aos problemas estruturais, as respostas que urgem no presente e os desafios de futuro, além das negociatas do orçamento ou dos afagos dos nichos eleitorais de cada um. Catorze anos de atividade parlamentar permitem-me afirmar que a instituição não é muito diferente de outras da sociedade portuguesa, há mais trabalho do que se pensa, mas pode-se ter um registo de 8 ou de 80, depende da atitude individual, da integração nas dinâmicas existentes e do nível de interação que se quiser ter com o exterior.
Pois, no país em que o Parlamento não é referência para quase nada, sobretudo para os media, quando convém emerge o critério do “assento parlamentar”, da representação partidária na Assembleia da República. O assunto não tem relevância direta para o quotidiano das pessoas, mas torpedeia o funcionamento das dinâmicas cívicas da República.
Como podem as televisões definir como critério para os debates presidenciais o “assento parlamentar” em candidaturas que constitucionalmente não têm natureza partidária, mas de base cívica, assente na recolha de assinatura de cidadãos que propõem candidaturas?
Com que rigor fecharam o quadro de debates antes do prazo final da entrega das assinaturas que formalizam as candidaturas presidenciais?
Como pode a ERC- Entidade Reguladora para a Comunicação Social, recentemente madre parideira de tanta intervenção arbitrária, assistir a este exercício sem que se pronuncie com o zelo expresso em ocasiões recentes? É do conforto do assento ou da conveniência de quem os assentou?
A questão surgiu com a exclusão do candidato Vitorino Silva das entrevistas e do quadro de debates presidenciais das televisões generalistas, mas transporta toda uma dimensão simbólica de um certo conforto elitista que abomina tudo o que não é Lisboa ou Linha de Cascais. A invocação do critério jornalístico ou da referência ao “assento parlamentar” não iludem o preconceito e desleixo pelas regras da República que a opção transporta. É assim aqui como em tantas outras questões, a subjetividade ou a objetividade conveniente a cobrir ataques aos padrões de uma República de cidadãos.
Conheço o Tino de Rans há mais 26 anos, dos tempos de uma Juventude Socialista não configurada no poder e nas suas prerrogativas, que se fazia à estrada e à vida para poder fazer política. Quis falar num Congresso Nacional da JS, em Portimão, em 1994, quando não era delegado e, como presidente do dito, não o deixei. Fez um comício à porta do pavilhão a zurzir-me, mas limitei-me a cumprir as regras. Não cumpria o pressuposto de participação: ser delegado. Falou mais tarde no Congresso do PS, no Coliseu dos Recreios, onde foi estrela mediática, mesmo não sendo delegado. Agora, cumpre os critérios que a República estabeleceu, tem todo o direito a participar em tudo, em pé de igualdade com os restantes candidatos. As opiniões e a subjetividade são para cada um, não para configurar critérios gerais.
O problema mesmo é que o critério do “assento parlamentar” é em si mesmo toda uma referência para o funcionamento da sociedade portuguesa. Se queres ter acesso a diretos, apesar do que está escrito na letra da lei, tem de preencher requisitos que não constam das regras da República. Isto é, tem direito se preencheres o critério do “assento” que estiver mais à mão do interlocutor. É isso que faz com que existam impulsos e ritmos diferenciados de aplicação da justiça, de tratamento de determinados assuntos e de resposta aos cidadãos, num quadro que incentiva ao arbítrio, à cunha e à distorção dos valores da República.
Numa sociedade volátil, dinâmica e com novas realidades a emergirem diariamente, o “assento” não deve e não pode ser critério, muito menos de projeção mediática das realidades. Houve um tempo em que “assento” junto dos Donos Disto Tudo assegurou avenças para alguns jornalistas pelo saco azul do GES, sabe-se lá a troco de que prosas. Vamos entrar em 2021 com os nomes desse assento para lamentar por esclarecer, que não surjam mais “assentos parlamentares”. Não são critérios para a vida, nem da República.
Votos de um 2021 com saúde e progressiva libertação das peias de 2020.
NOTAS FINAIS
AS VACINAS CHEGARAM. Gerir as expectativas é dos exercícios mais complicados. É duvidoso que o envio de um SMS universal, com informação sobre o início da vacinação e a enunciação de um futuro contacto para o agendamento, seja um bom exercício de gestão das expectativas. É um processo demasiado longo para uma expectativa em suspensão.
ELES NUNCA DEIXARAM DE ESTAR. Com justiça, fala-se muito do papel central, resiliente e cívico dos profissionais de saúde e de todos os outros trabalhadores que estão na primeira linha da resposta à covid-19. Entramos num ano de tradicionais efervescências locais, reais ou fundadas em interesses eleitorais. É justo reconhecer a importância da presença, da ação e da reação das mulheres e dos homens eleitos nas freguesias e nos municípios para o combate pandémico. Estiveram presentes mesmo quando falhou a resposta geral do Estado Central.