Com a sua racionalidade que passa por uma forma de cuidar dos vivos, sepultando à pressa os mortos, há uma espécie de fé sinistra que faz o seu caminho, constitui os seus fiéis, esses que são os primeiros a confiar, os últimos a aceitar as mais terríveis suspeitas quando, por fim, as evidências nos deixam perante as ossadas de um ser que não passava de uma fantasia absurda. Não é que nos tenham faltado avisos. Num dos seus ensaios (“Free thought and oficial propaganda”), Bertrand Russell propunha que as escolas primárias ensinassem a arte de ler com incredulidade os jornais. Jorge Luis Borges exaltou a ideia desta “disciplina socrática”, notando que, “das pessoas que conheço, pouquíssimas a soletram sequer. Deixam-se enganar por artíficios tipográficos ou sintácticos; pensam que um facto aconteceu porque está impresso em grandes letras negras; confundem a verdade com o corpo doze (…)”
Não é que possamos ceder a uma qualquer teoria mirabolante simplesmente por esta contrariar de forma enfática os pressupostos da narrativa oficial. Simplesmente, o que é preciso é que, mesmo aqueles que buscam informar-se, estejam antes de tudo imunizados contra “as superstições e os sofismas” que enformam essa forma de publicidade que incide sobre a realidade, e que finge confundir-se com ela, como uma pele, quando muitas vezes não só erra, mas distorce e fabrica os próprios factos.
Um meio de inoculação, de guardar uma distância prudente frente a esse regime de representação imediatista, passa por ler dentro de outros registos, outros reflexos e ecos, confrontar-se com hipóteses inquietantes, procurar um outro lado, ouvir as objecções levantadas até pelo advogado do diabo. Um desses regimes adversos à prosa do mundo é o da poesia, essa que tem por hábito convocar para as suas reflexões presenças ou fábulas antigas. Como escreveu William Carlos Williams, é difícil ler as notícias através dos poemas, e, no entanto, há homens que morrem miseravelmente por carência daquilo que se pode encontrar neles.
Também podemos recuar a Aristóteles, que no capítulo VI da “Poética” diz: “A poesia é mais verídica do que a história.”
Em “A Literatura e os Deuses”, o escritor e editor italiano Roberto Calasso lembra que em Leopardi encontramos uma compreensiva e clarividente justificação para esse ouvido que apanha vozes presas entre as épocas. E diz-nos que “servem – são, aliás, preciosas – para escapar à asfixia do próprio tempo, em relação ao qual o poeta não pode ter senão uma perene acção de sabotagem, porque ‘tudo, menos a poesia, poderá ser contemporâneo a este século’”. E cita Leopardi: “Perdão, portanto, pelo facto de o poeta moderno seguir as coisas antigas, por usar a linguagem e o estilo e a maneira antiga, por usar, também, as fábulas antigas, etc., por mostrar que se aproxima das opiniões antigas, por preferir os costumes antigos, usos, acontecimentos, por imprimir na sua poesia um carácter de outro século, por procurar, em resumo, ou ser, quanto ao espírito e à índole, ou parecer antigo. Perdão por o poeta, por a poesia moderna não se mostrarem, não serem contemporâneas deste século, porque ser contemporâneo deste século é, ou inclui essencialmente, não ser poeta, não ser poesia.”
Entre nós, Hélia Correia é das poetas que está mais próxima desta maneira antiga, de imprimir na sua poesia esse carácter, essa consciência de que “os deuses e os homens seguem o rasto de um movimento secreto que os aproxima e os afasta no tempo, como figuras num carrossel”. Nas suas opiniões há algo de clamoroso, os seus pensamentos atravessam os versos como pressagos, e face ao momento que estamos a viver, no livro que acaba de publicar – “Acidentes” (Relógio d’Água) – atêm-se “na peste e na confusão dos sentidos, e na excitação geral do espírito divinatório” (Holderlin), numa época que poderia descrever-se, como o poeta alemão em relação à sua, falando em inércia, numa ociosidade purulenta, que enterra o fascínio dos mitos na necrose de uma linguagem que denota antes de tudo a perda do mundo. Uma espécie de embaciamento da perspectiva, ou uma desfocagem, tonturas que acompanham o ruído e nos tornam seres incomunicáveis, e, finalmente, impensáveis até para si mesmos. No fim só resta uma infidelidade entre os actos e as palavras, a vontade que exprimimos afasta-se do desejo, e a própria vida fica refém de conflitualidades estéreis, de uma trama nebulosa e que nada sabe do prazer. Ora, para Holderlin a resposta passava por entender o engano que liga o deus e o homem – “para que o curso do mundo não tenha lacunas e a memória dos celestiais não se extinga, [os dois] comunicam na forma, esquecida de tudo, da infidelidade, dado que a infidelidade divina é o que melhor se retém”. Calasso adianta que a palavra poética surge da dupla traição “dos deuses em relação aos homens e dos homens em relação aos deuses”, mas que não recuperaremos as nossas feições na tentativa vã “de dar vida a novas mitologias, como se fossem disfarces para tornar a vida mais exaltante”. Aquilo de que se trata é de “reencontrar a ‘sobriedade ocidental’, a ‘clareza da representação’, aquela que os Gregos, nascidos do ardor oriental, tinham descoberto como um exótico esplendor na palavra homérica”.
O livro arranca desde logo com uma reflexão sobre as palavras, aquela que é a sua condição, e Hélia começa por aí porque sabe que o que é próprio deve ser aprendido não menos do que aquilo que é estranho, e chama-lhe “Esmola”, a este poema, e começa por indiciar o estado em que se encontram, de tão vulgarizadas, desentendidas, gastas ou mesmo podres: “Lançai-me uma palavra, como alguns/ atiram côdea aos cães.” Mais à frente, toma-a, a essa palavra, dizendo que a recebe como um animal abandonado e ferido, e que, “não sabendo onde encontrar abrigo/ nem alimento,/ dormirei com ela,/ ouvindo-a murmurar,/ enquanto os bosques/ vão crepitando e a cinza/ nos recobre.”
Logo aqui, temos já um sinal da ameaça presente à natureza, e veremos como esta mais do que indispor-se, do que ficar à margem, num convite à errância, à dissolução num mundo antigo, antes ameaça “despertar com o fragor das armas” (Holderlin). Mas para começo de conversa, releva o verbo como acontecimento que soube impor a relação entre as coisas e dar forma ao mundo, e que, agora, vê as suas escalas desfazerem-se umas sobre as outras, perdendo toda a profundidade. “Pensar que elas passavam pelos séculos/ com o seu corpo musical, tão frágil/ e tão convocador de tempestades./ Essas pequenas criaturas transparentes,/ sem peso, com alguma vocação/ para a malignidade, pois não têm/ nem sombra nem reflexo,/ e dos seus dedos/ desce a grande beleza do terrível/ e a grande redenção/ que há no poema.”
Este arranque é a chave. E este livro é como uma longa meditação poética, composto por alguns ciclos, e também por um ou outro poema desses movidos pelas circunstâncias, como a bela homenagem a Herberto Helder, celebrando a passagem desse caçador encantado entre nós, o exemplo de como superou o que há de mais trágico para nós: a mesquinhez da morte.
O livro é todo ele dedicado ao esforço de quebrar este feitiço potente que nos domina, o de uma forma de opressão que se apossou dos nossos anseios e desejos, dominou os nossos comportamentos, destituiu a linguagem, assim desarmando a nossa consciência e até a experiência das coisas, de modo que damos por nós naquele estado de inanição que é uma forma de exílio, o mais rigoroso de todos, aquele que nos priva da própria clareza das palavras, e que Holderlin formulou nestes termos: “quase perdemos a palavra em terra estrangeira”.
Essa terra estrangeira é o efeito de um estranhamento absoluto, que nos faz ser incapazes de nos reconhecermos num espelho, de sentir como os reflexos nos desfiguram, preferindo desviar o olhar, distrairmo-nos seja como for, como quem entra timidamente nos próprios sonhos receando o descontrole, a forma como o pesadelo os ocupa. E tudo começa nas palavras: “Pequenas, misteriosas criaturas”, diz-nos Hélia, “que não nascem do mundo natural,/ que são obra dos homens,/ sendo os homens a obra delas,/ vejo-as hoje mais do que escorraçadas:/ submetidas.”
“Acidentes” é marcado por uma série de confrontos, é uma obra que assume o compromisso de encarar o desastre contemporâneo, e começa por abandonar as presunções mais comuns de um tempo que está obcecado com a novidade precisamente por se sentir tão constrangido, dilacerado pelas servidões a que se vê preso, definhando. Este não é um livro fulgurante no que toca a essa busca de originalidade e autonomia, é antes uma prece que reata a nossa ligação à Antiguidade, e que mostra aquela espécie de fé que vem de conhecer os homens não das últimas décadas mas de um movimento que tem séculos, milénios, e que entende que o que a espécie transmite nesse regime mais aberto é um desejo de libertação tão forte que nem o pano opaco da História consegue cobri-lo, não conseguindo fazer esquecer como o traço de carácter que mais enobrece os homens, ao ponto de milénios depois ainda guardarmos a sua memória, é essa insurreição face aos deuses.
O segundo ciclo do livro fala-nos da “Distracção” em que estamos imersos, fala-nos de ilusões e enganos, fala-nos, por exemplo, “dessa coisa a que chamam utopia/ porque não tem lugar na natureza,/ e que, por falta de raiz, não dura/ muito mais que um insecto luminoso”. Fala do processo de infantilização das nossas sociedades, das leis e compromissos com que a condição humana, ao longo das últimas décadas, se tem deixado reduzir à segurança material, em que a propriedade se tornou o único limite sagrado, inviolável, e à medida que tudo o que diz respeito à interioridade vai cedendo até se tornar inexpressivo. E quanto à perpetuação dos regimes de excepção, das crises, dessas urgências que diluem tudo, Hélia lembra-nos que há entre nós um número cada vez maior de pessoas cuja única paixão que nutrem nas suas vidas é pelo medo. “Tivéssemos, ao menos, percebido/ quando, ao anoitecer, se ouvia o grito/ dos pássaros no bosque que o alerta/ é uma condição da qual não pode/ sair ninguém, ainda que cante,/ ainda que adormeça./ E nós faltámos ao dever/ da inquietação.”
Que traição poderia ser pior do que a forma como as contrariedades que nos dominam nas horas que passamos acordados terem constituído um ambiente de ansiedade permanente, permitindo-lhes penetrar nos próprios sonhos, de tal modo que nem quando fechamos os olhos nos entregamos ao nosso inconsciente, e somos, assim, incapazes de nos ver transportados para um outro mundo, uma outra coisa. “Tivéssemo-los visto, como dantes/ se via o avançar do inimigo/ sem consentir à nuvem de poeira,/ por dourada que fosse,/ a tentativa/ de encobrimento e dissimulação./ Tivéssemos sabido que não há/ nunca apaziguamento, que não há/ a caminhada purificadora;/ que entre os que cercam/ e os que são cercados/ nem o ar é comum./ E há muito mais/ que um fosso:/ há esse modo/ de olhar tão desigual/ de um lado e de outro.”
Neste ponto, Hélia recupera o manifesto “Com respeito às palavras”, uma poderosa reflexão que publicou nas páginas do “Público”, em janeiro de 2014, a propósito do movimento dos indignados, lembrando que a própria palavra, no rigor do latim, fala do que é tornado indigno, mas que ao negar essa humilhação, empreende uma “singular rebelião”, “deitando ao chão a sua origem”, “tomando a sua vida nas mãos”. Mas vale a pena lembrar um outro parágrafo desse texto, em que Hélia incorria numa sofisticada inversão do monólogo de Shylock, na peça “O Mercador de Veneza”, desumanizando essa elite que hoje nos tem submetidos: “Parece, às vezes, que o cenário da ficção científica assentou no planeta actual: que criaturas mais ou menos humanóides nos conquistaram pelo interior e desapoderaram-nos de tudo, esperança, dignidade e alegria. Vimos tanto clamor nas praças gregas, cólera e fogo com nenhuma consequência. É como se entre os protestantes e o poder não houvesse trajecto, não houvesse natureza contínua. Duvido até que conseguissem procriar se a carne de uns e de outros se encontrasse. Respiram ares diferentes e não faz sentido algum que certa retórica da esquerda os desafie a que experimentem a pobreza, a que tentem viver com o salário que destinaram para os indefesos. Provavelmente viveriam bem porque não se alimentam como nós. Nem dormem como nós. Talvez nem morram. A verdade é que pouco pensamento nós conseguimos produzir sobre eles. A desumanidade é um mistério.”
Este livro prossegue o esforço de demarcar uma fronteira decisiva entre um nós e um eles, a humanidade e o monstro que se gerou no seu seio, no momento em que os privilégios tornaram alguns homens criaturas absolutamente desligadas, que se caracterizam por uma indiferença mais perigosa que a pior das formas do ódio: “Eles matarão/ somente porque existe um pensamento,/ como um tumor,/ naquilo que os constitui./ Um pensamento onde há/ poucas palavras,/ como que inteiramente/ militar.”
Já George Bernard Shaw tinha afirmado que “o terror do Inferno é a sua irrealidade”. E Hélia diz-nos que o nosso desprezo pela natureza é uma forma de irrealidade, é uma distracção tão profunda em que nenhum traço da Antiguidade se conserva em nós. “De certo modo, para que eles existam,/ uma antiga harmonia precisou/ de dar-se por vencida.”
Não é que a História tenha chegado ao fim, mas trata-se simplesmente do facto de terem nascido os primeiros homens a quem esta não lhes diz nada, seres pós-históricos, cuja desumanidade nasce de um individualismo de tal ordem que conseguem inverter a célebre frase de Terêncio: “Nada do que é humano me é estranho.”
Estes seres são a própria estranheza. Se biologicamente ainda estão ligados à tão dispersa genealogia humana, as suas consciências são puramente instrumentais, encarnam uma lógica fria, que não vê o mundo senão através dos mapas, e que lançou sobre eles a sombra implacável da sua finalidade medonha: o lucro. E a partir de um certo ponto, o lucro não é nada senão uma das disposições do extermínio, da “conquista do outro”. E a monstruosidade é precisamente essa condição que, por não ter interioridade, só pode exprimir-se pela aniquilação do outro.
Gerámos, assim, o nosso próprio vírus. Como sugere Hélia na segunda parte do ciclo “Os Mestres”: “Tantas vezes usámos a palavra/ para as perturbações da informática,/ tão familiar é, que lhe atribuímos/ uma forma, um desígnio, uma maldade,/ um dom vindicativo, algo que sai,/ feroz, da natureza maltratada.// No entanto, não é mais do que potência,/ um projecto de multiplicação,/ um salto, ainda sem o saltador,/ um invasivo que entra no terreno/ e dele vai extrair réplicas à força,/ tal como dantes se espalhava a fé.”
E, mais à frente, na sétima parte do ciclo, traça um quadro de suspeição face ao regime de exílio digital com o qual nos vemos confrontados num momento em que a crise pandémica cada vez mais se parece com um ensaio, uma vasta experiência social, no sentido de limitar e, por fim, romper esses laços tão antigos que, por si só, fazem reverberar nas células o ilimitado prazer que jaz como que adormecido nos corpos, e, então, diz-nos: “E, pois que os Mestres deram ao desprezo/ os sentidos do afecto, o toque, o cheiro,/ vivendo ao longe, trabalhando ao longe,/ amando sem qualquer imperfeição,/ o diligente vírus vem marcar/ toda a proximidade com veneno/ para que ela, mesquinha, antiquada,/ um vestígio animal, desapareça.”
Assim, este é um poema que se insurge contra essa linguagem mais paranoica do que política, essa forma de atrofia que se impõe pela repetição, uma linguagem em que “predominam o estereótipo e a mais inquietante seriedade”, como notou Eduardo Prado Coelho, denunciando as linguagens que afastam a fruição e recalcam o insconsciente. E, assim, se a morte chega a ser mesquinha, e se essa é a nossa grande tragédia, não pode haver despossessão maior do que proibir esses ritos funerários com os quais insistimos em honrar e despedirmo-nos dos mortos. E numa altura em que os mortos são apenas aqueles dados como desaparecidos, há um grito que se insurge em nós no sentido de ir em busca deles. Pois de outro modo a própria vida já não se distinguirá dessas formas de sumir no próprio chão que se pisa, sem deixar qualquer memória ou sinal.
E se “o divino é com certeza aquilo que impõe com a máxima intensidade a sensação de estarmos vivos” (Calasso), é pela indignação face à morte que demonstramos a nossa cólera por não sermos deuses. E mesmo se a cólera não é o tom dominante na poesia de Hélia Correia, não deixa neste livro de passar pelo grito, numa forma de clamor diante da indignidade a que estamos a assistir: “E ninguém dança já aquela dança/ da morte de outros tempos, já ninguém/ se despede da vida com banquetes/ entre o chiar dos ratos infectados.”