Emilia Pardo Bazán

Emilia Pardo Bazán


Quinze contos ferinos e o retrato de uma Espanha carlista indomavelmente máscula e cruel para com as mulheres. As histórias passam-se, na maioria das vezes, mesmo aqui ao lado, na “primitiva e bela” Galiza, e todas vão desaguar no mais calejado esgoto feminino.


Emilia Pardo Bazán (1851-1921), ilustre condessa nascida na Corunha, destacou-se por ter sido a primeira mulher a presidir à secção de literatura do Ateneu de Madrid, ter-se consagrado conselheira de instrução pública e ter sido a primeira professora catedrática de Literatura Contemporânea de Línguas Neolatinas da Universidade Central de Madrid.

Contos Bravios, editado pela Sistema Solar em outubro último, tem tradução e apresentação de Aníbal Fernandes. Com o rigor que o caracteriza, Aníbal Fernandes oferece-nos no seu prefácio a única edição disponível no mercado em língua portuguesa desta escritora, que só foi traduzida para o nosso idioma na década de 90, pela Teorema, com Os Paços de Ulloa. Além de nos fornecer referências fulcrais que nos ajudam a situar a sua irreverência e controvérsia, quer no que diz respeito aos seus dados biográficos, quer no que concerne a influências artísticas diretas, como será o caso de Guy de Monpassant, Émile Zola, Galdós ou José María de Pereda, o tradutor elucida-nos sobre a arte com que Bazán sabia “prender o leitor a uma história”. É que saber prender implica o sentido de saber poupar o leitor, e isso é precisamente o que acontece na sua arena literária. São textos acelerados, trepidantes, alvoroçados. Ainda no seu clarividente prefácio, lemos: “Ela queixava-se: se em vez de Emilia eu escrevesse Emilio, nada desta tempestade se ouviria. Era um lamento que se ajustava à sua bem visível afirmação feminista. Um país que queira prosperar e ser dono do seu destino não pode relegar as mulheres para as funções domésticas, escreveu num ensaio; e ainda: sai bastante barato dar a morte a uma mulher”. Ora, isto diz praticamente tudo acerca deste vulto feminino pronto a rachar fendas numa sociedade vedada à mulher. E talvez Bazán, por isso mesmo, se tenha munido deste mote de que “sai barato dar a morte a uma mulher” para escrever todos os contos reunidos neste livro e em muitos outros. Talvez seja pertinente atentar que é, na verdade, apenas num conto que esse mote se aplica. É “Na Aldeia”, nesse último conto, que vemos a morte ser reservada sem rodeios a uma mulher. Talvez por isso seja este o conto mais violento e desolador do livro. Libória, uma rapariga educada por monjas, quando cresce vê-se forçada a trabalhar fora da sua aldeia e, por se apresentar com modos diferentes dos das outras raparigas, é vista sempre como uma forasteira. Por essa única razão será brutalmente agredida até à morte por homem boçal cujas palavras, ao vê-la morta, são carregadas de um imenso desprezo, um desprezo que lhe saiu barato (156): “O quê! Um homem já não pode exceder-se numa brincadeira? Ela própria pôs-se a jeito. Pois que se enfade e se arranhe. É para aprender a não vir para aqui com novas modas”. 

É impressionante como a maioria dos contos conseguem ser tão atuais. Libória saiu barata demais às mãos do homem que a matou, como também tantas outras Libórias, no espaço de dois séculos, continuam a sair baratas, mais que baratas nas mãos de tantos homens. Mas se atentarmos à exceção deste, em todos os outros textos encontramos sempre a mulher que, impetuosa, insubmissa, infiel e indomável, se destaca com larga vantagem comparativamente aos homens, que (p. 56) “quanto mais velhos, mais tontos”.

Esta supremacia avassaladora da mulher destemida e confiante face ao homem obtuso, impolido e alarve é um registo muito frequente e transversal à sua escrita porque, afinal, a mulher é capaz de tudo.

Em Geórgicas lemos que (p. 38) “os homens eram fêmeas e as mulheres machos de bigode”, que (p. 39) a sua casta “tinha terminado, mas as mulheres saíam a terreiro, e ainda havia de ver-se o que eram capazes de fazer” e que (p. 39) “a mulher habituada nas terras galicianas a tão rudes trabalhos como o homem iguala-o na força física e às vezes supera-o; e não é raro dar-se o caso de as mulheres saírem no jogo da luta como vencedoras”. É precisamente esta ideia de jogo e de mulheres vencedoras que move a escritora. Tudo é um jogo, uma disputa. O casamento, os filhos, a vida, a morte, uma côdea de pão, a labuta no campo. Casadas, viúvas ou solteiras, “mulheronas”, todas elas são mulheres vencedoras, descomprometidas, que se servem dos homens. Ricas ou pobres, fidalgas ou humildes, são desempoeiradas, fortes, bravias. Em todas as narrativas, não há uma única personagem feminina que não seja hábil, matreira, ardilosa. São Górgonas disfarçadas que, quando se vêm ameaçadas, mostram-se geladas, sem o mínimo de escrúpulos. São mulheres prisioneiras de ninguém, invertebradamente marginais, mesmo quando se trata da relação entre mãe e filha, como podemos ler em “Saletita”. Neste fabuloso conto, a viúva Doña Maura Bujía empurra a formosa filha de 19 anos para os braços de um velho milionário com os pés para a cova, recém-chegado à aldeia depois de ter feito fortuna no estrangeiro. Acontece que este (p. 53) “velhote de pernas trémulas e boca desdentada, apoiado num imponente bastão de cana das Índias com borlas e castão de ouro (…)”, tinha sido noivo da mãe da jovem. Toda a gente na aldeia tinha conhecimento e comentava a relação dos dois no passado. Bazán, que sabe na perfeição manipular as perceções do leitor, faz-nos temer a certa altura pelo futuro de Saletita, tão pura, cândida e inocente, ao pensarmos que esta vai entregar-se a um velho sem felicidade e juventude para lhe oferecer (p. 56): “Uma dificuldade a mãe pressentia, e dificuldade tremenda. Quando Don Pánfilo manifestasse as suas honestas intenções, como poderia manejar a Saletita? Como é que a persuadiria a fazer o sacrifício?”, para no momento seguinte, como uma punhalada nas costas, rematar (p. 58): “Pois bem! Eu sei que gostava do noivo para si!… Já era uma coisa em que eu tinha pensado! Desde o primeiro dia levei em conta… Mas atreva-se a tirar-mo… Está a ver estas mãos? Mais nada lhe digo…”

Como pode constatar-se, não haverá um único conto em que o leitor se consiga libertar de um certo constrangimento. É uma escrita de combustão espontânea cujas cinzas ficam melindradas nos nossos forros mais íntimos.

Nas suas narrativas vemos Bazán trazer sempre à tona a redoma campestre, com os seus aldeãos, os seus costumes, as suas feiras. É o tempo dos curandeiros, dos capelões, dos ferreiros, dos contrabandistas, dos jornaleiros, dos cultivadores que cortam o tojo nos montes. É o tempo da desfolha do milho, da caça às perdizes, das carabinas remendadas. Vale a pena tomar em atenção, a propósito deste universo rural e campesino, a seguinte anotação em nota de rodapé logo no segundo conto, “Geórgicas”: Depois de este conto baseado em fatos reais estar escrito, pareceu-me que o seu tema era idêntico ao de outro assinado por Tolstoi. Antecipo-me a declará-lo, e vejo nele mais uma prova das afinidades que sempre encontrei entre o camponês russo e o da minha terra”. 

Agustina, a propósito dos russos, dizia que “a realidade da terra russa, com a sua solidão frenética, confissões em que tudo se diz e tudo se cala; em que se suspende com lágrimas a palavra essencial, e com um crime o último abraço fraterno”. Pois bem, é precisamente esse abraço fraterno e suspenso que parece cobrir todas as mulheres destes textos.

São textos com descrições precisas, minuciosas e exultantes, onde Bazán entrincheira o leitor entre os campos, nas casas famintas e esgoeladas dos agricultores, nos salões de baile brega de domingo ou nos faustosos paços senhoriais engalanados com os quatro costados dos seus brasões. São descrições sob a asa de um realismo impregnado de denúncia e detalhe.

Ainda em relação à mulher, podemos concluir que não há uma silhueta feminina bazaniana escrupulosa e definitivamente embalsamada. Não, a mulher é sempre cavilosa, trampolineira, e embora seja indomável, insubmissa e unicamente obediente a si própria, é um ser em constante mutação. Quer sejam mulheres do povo, de tamancas, com perfume barato de bonne, mantelo de burel, ou morgadas, são todas mulheres independentes, inundadas de pólvora. São mulheres com atitude que tomam as rédeas da casa quando os maridos as deixam, como é o caso de Dolores em “Quase Artista”, ou da Morgada de Bouzas, mulher de armas pronta a toda a hora a defender o seu património e os seus caprichos. Quando esta morgada descobre que o marido lhe é infiel com a bonita costureira da terra, decide ceifar as orelhas da rival a sangue frio. Contudo, o leitor percebe que não é por amor ao marido que tem essa atitude, mas sim porque mais do que tudo na vida, ela queria um filho que a tornasse mãe (p. 34): “Da costureira bonita, sabe-se que nunca apareceu em público sem levar o lenço muito agarrado à cara. Da morgada, que no ano seguinte teve o boneco. De Camilo Balboa, que nunca mais brincou a fazer picardias contra a sua mulher, ou se brincou soube dissimulá-las com habilidade”.

São 15 estes Contos Bravios e, embora curtos e concisos, têm a habilidade magistral de fazer com que o leitor ainda hoje os sinta espessos, a avançarem crespos dentro de si.