O novo estado de emergência


A gravidade da situação pandémica que atravessamos não se compadece com a não observância estrita das regras constitucionais relativas ao estado de emergência.


No passado dia 27 de Novembro, o Presidente da República anunciou publicamente que seria de bom senso que os portugueses soubessem como organizar o fim-de-semana de Natal, propondo que fossem definidas antecipadamente as regras a vigorar no período das festas, ainda antes da renovação do estado de emergência para esse período. Seguindo essa orientação, o primeiro-ministro anunciou em 1 de Dezembro que, quando ocorresse a próxima renovação do estado de emergência, o Governo iria anunciar não só as medidas para essa quinzena, mas as que iriam vigorar também para a quinzena seguinte, até 6 ou 7 de janeiro. Isto porque, nas palavras do primeiro-ministro, “é fundamental que as famílias e agentes económicos possam ter uma noção antecipada de como vai ser o Natal”.

Foi assim que o decreto do Presidente da República 61-A/2020, de 4 de Dezembro, procedeu à renovação por mais 15 dias do estado de emergência, até às 23h59 do dia 23 de Dezembro de 2020, escrevendo-se, no entanto, no seu preâmbulo que “é previsível que esta renovação se tenha de estender pelo menos por um período até 7 de janeiro, permitindo desde já ao Governo prever e anunciar as medidas a tomar durante os períodos de Natal e Ano Novo”.

E o Governo assim fez, pelo que o seu decreto 11/2020, de 6 de Dezembro, refere expressamente no seu art.o 1.o que “o presente decreto regulamenta a prorrogação do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.o 61-A/2020, de 4 de dezembro, bem como a eventual renovação do mesmo”, abrangendo assim o Natal e o Ano Novo, que não estavam abrangidos por essa renovação do estado de emergência.

Em relação ao Natal, o Governo decretou que o dever geral de recolhimento domiciliário não seria aplicável nos dias 23 a 26 de Dezembro (art.o 46.o) e a proibição de circulação na via pública apenas se iniciaria às 02h00 do dia seguinte nos dias 24 e 25 de Dezembro (art.o 45.o, n.o 1, b)). Os restaurantes poderiam funcionar normalmente nos dias 24 e 25 de Dezembro e até às 15h30m do dia 26.

Em relação ao Ano Novo, o Governo excluiu o dever de recolhimento domiciliário e a proibição de circulação entre as 5 horas de 31 de Dezembro e as 2h00 do dia seguinte (art.os 49.o e 50.o), proibindo apenas a circulação entre concelhos entre as 00h00 e as 2h00 desse dia (art.o 48.o). Quanto aos restaurantes, foi permitido o seu funcionamento no dia 31 de Dezembro, só tendo sido obrigados a encerrar às 15h30m do dia 1 de Janeiro.

Embora esta execução antecipada de um estado de emergência não decretado violasse claramente a regra constitucional da duração do estado de emergência, a verdade é que este decreto criou legítimas expectativas nas famílias e agentes económicos, tendo muitos restaurantes seguramente feito encomendas antecipadamente a contar com o seu cumprimento.

Mas, como o homem põe e o vírus dispõe, este não se comoveu nada com esta antecipação das medidas para o Natal e Ano Novo. Na verdade, verificou-se uma multiplicação de contágios de tal forma elevada que diversos países europeus decretaram um severo confinamento nessas datas. Já em Portugal, o Governo anunciou uma grande alteração das regras para o Ano Novo, com a proibição de circulação na via pública a partir das 23h de 31 de Dezembro e nos dias 1, 2 e 3 de Janeiro a partir das 13h. E os restaurantes apenas poderão estar em funcionamento até às 22h30 no dia 31 de Dezembro e nos dias 1, 2 e 3 de Janeiro, depois das 13h, só poderão funcionar através de entrega ao domicílio.

Quanto ao Presidente da República, renovou o estado de emergência através do decreto 66-A/2020, de 17 de Dezembro, cujo preâmbulo nos informa que essa renovação “foi já pré-anunciada no preâmbulo do Decreto do Presidente da República n.o 61-A/2020, de 4 de dezembro, tendo o Governo estabelecido medidas a tomar durante os períodos de Natal e Fim do Ano”. Resta saber se o Presidente se refere às medidas do decreto 11/2020 ou às que foram posteriormente anunciadas pelo primeiro-ministro, contrárias a esse decreto.

Tudo isto demonstra a enorme irregularidade com que decorreu todo este processo. A gravidade da situação pandémica que atravessamos não se compadece com anúncios antecipados de medidas que depois não se concretizam, e muito menos com a não observância estrita das regras constitucionais relativas ao estado de emergência. A Constituição não pode ser vítima da pandemia.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990