O caso da prolongada apatia ante a morte de um cidadão ucraniano nas instalações do SEF deve interpelar-nos direta e objetivamente, pelo que diretamente significa e, mais ainda, pelo que pressupõe.
Não me interessa, porém, analisar aqui as concretas vicissitudes das posteriores intervenções institucionais das autoridades que com o caso foram lidando, desde que ocorreu.
Os comentários sobre elas estão demasiado contaminados pelo oportunismo politiqueiro e, por essa razão, desacreditam qualquer análise política séria que, neste momento, sobre tão horrível acontecimento se possa fazer.
No que verdadeiramente importa, tal facto traduz, da parte das instituições públicas, a evidente predominância de uma cultura autoritária, de superioridade e de distanciamento em relação aos cidadãos e aos seus problemas, os quais são, precisamente, a sua razão de existir.
Se parte dessa cultura tem raízes no regime ditatorial que nos governou até ao 25 de Abril, outra resulta de uma crescente falta de educação e sentido cívico, que transcende a relação entre autoridades e cidadãos, pois desenvolve-se, também, no relacionamento entre as próprias instituições públicas.
Quem, como eu, já se relacionou antes, e tem de relacionar-se ainda hoje, com autoridades e responsáveis de serviços públicos, constata, claramente, o gradual decréscimo de cortesia – o mesmo é dizer de respeito – com que estes se correspondem com os intervenientes do mesmo ofício.
Muitas vezes, ouvi queixas de advogados que referiam ser mal atendidos, ou pura e simplesmente desrespeitados, nas relações que, profissionalmente, tinham de estabelecer nos tribunais.
Confesso que, durante muitos anos, negligenciei tais queixas, que considerava exageradas e circunscritas a casos menos felizes, atribuindo, também, alguma culpa aos queixosos.
No essencial, errei.
Hoje, parece-me evidente a falta de educação que prevalece nos contactos profissionais que aí decorrem.
Uma regra antiga, que considerava apreciável, era a de os magistrados se corresponderem diretamente entre si, e não por via de funcionários, quando tratavam de matérias processuais comuns.
Disso, já nem me lembro.
Sem mencionar já as fórmulas mais desagradáveis e, nalguns casos, mesmo descorteses que, infelizmente, também vão sobejando nas comunicações oficiais, o que mais frequentemente acontece hoje é a total falta de comunicação e empatia pessoal entre quem, por exemplo, quer enviar um qualquer documento ou pedir um qualquer tipo de apoio para a realização de uma qualquer tarefa e o destinatário de tais envios ou missivas.
Claro está que o uso de correio eletrónico, e a informalidade que ele poderá pressupor, ajudam.
Todavia, nada justifica, nomeadamente, o envio de um documento anexo sem, sequer, no respetivo mail, se inserir uma simples explicação do que se pretende com a sua remessa; e isso, infelizmente, é um procedimento recorrente.
Tudo é impessoal e sem a réstia de cortesia, que deveria presidir à relação entre pessoas que trabalham para o mesmo fim: o interesse público.
Ao constatar, porém, esta realidade interna ao sistema judiciário, não posso, assim, deixar de congeminar sobre a forma como os responsáveis dos seus serviços se correspondem e tratam com os que deles, diretamente, não fazem parte.
Terá de ser pior, obviamente.
Poderá parecer exagerado o paralelismo que estabeleci entre a prática de um crime inqualificável e a simples descortesia comunicacional entre os serviços públicos, e entre estes e os cidadãos, mas não creio que o seja.
É, todavia, tudo uma questão de grau, pelo menos no que se refere à indiferença e à ignorância do outro, quando não à sua pura hostilidade e menosprezo.
Mas é mais: é, também, um sinal da falta de sentido de comunidade e de civismo, que devem, em quaisquer circunstâncias, presidir às relações sociais, pessoais e profissionais.
É, portanto, uma questão cultural.
Neste aspeto – inclusive na omissão desdenhosa dos cumprimentos às pessoas com quem nos cruzamos na rua – temos, lamentavelmente, regredido muito.
E não, não é penas o resultado da pandemia e do ensimesmamento que ela origina.
Nem, tão pouco, é o resultado do cansaço originado pela acumulação de trabalho – que é real –, da impessoalidade da comunicação digital, ou do mal-estar que grassa na sociedade por muitas e variadas razões.
É, claramente, o resultado de uma educação que, propositadamente, fomenta o individualismo e o salve-se quem puder nas relações sociais de qualquer tipo.
É o resultado de uma cultura adversa à solidariedade e à consideração do outro, seja ele o vizinho que conhecemos, seja ele o estranho nos bate à porta.
Por tal razão, é que as hipócritas, e também genericamente tardias, críticas institucionais ao que se passou contribuem, ao contrário do que aparentemente pretendem, para o descrédito dos princípios humanitários com que, de resto, se justificam.
Reabilitar, em todas as situações e pormenores, o sentido de respeito pelo outro e a cortesia para com ele – qualquer que ele seja – é a melhor maneira de cumprir e fazer cumprir os direitos humanos e evitar mais e mais abusos horrendos.
Que a morte de Ihor Homeniuk sirva, ao menos, para isso.