Nelson Rodrigues. A Nova Prostituição do Brasil

Nelson Rodrigues. A Nova Prostituição do Brasil


A memória é uma carraça que, se nos suga, também nos alimenta. A memória é a carraça que nos engrossa o sangue com nostalgia. A Menina Sem Estrela (Tinta da China) é a história dessa nostalgia. Em oitenta e um capítulos, Nelson Rodrigues conta-nos detalhadamente os episódios mais marcantes da sua vida.


Entenda-se que o facto de ser uma narrativa segmentada, não implica de maneira nenhuma a existência de uma fissura no flanco das suas recordações. Não, pelo contrário, por estarem cadastradas em capítulos, por estarem disciplinadas, o leitor comungará, entre as pausas, do silêncio e de algum constrangimento ou mágoa com o escritor, e não se perderá nunca nesse circuito cujos radares são o seu íntimo e a sua visão humana, mas também a visão implacável de um país e de um povo. Esse país é o Brasil e o povo, o povo é o brasileiro pois claro!

O brasileiro que «é um furioso nato»; o brasileiro que «é um homem de fé»; o brasileiro que chamado de “doutor” «treme em cima dos sapatos»; «o brasileiro que «é fascinado pelo chocalho da palavra»; o brasileiro que é «feriado»; o brasileiro que «tem, a qualquer hora, uma luminosidade de sátiro vadio.»

Lemos com muita ironia e graça todas estas descrições do brasileiro, porque este é um autor que sem dúvida traça com exímio escrutínio o seu perfil. Mas não é só o perfil do brasileiro, é também o dorso de um país em mutação constante, e o seu próprio interior. A certa altura ele confessa-se de tal maneira abertamente ao leitor que chega a questionar e a pôr em dúvida a sua torrencialidade nostálgica. (p.143) «Não sei se isso que estou contando é ingénuo ou humilhante.» Mas de tão verdadeiro e límpido, acabou por não ser em nenhum momento do livro uma coisa nem outra.

Comecemos pela sua ironia. Logo nas primeiras páginas, não há como não soltar uma risada ao ler um engano auditivo tão malicioso quanto “A Nova Prostituição do Brasil”, em vez de “A Nova Constituição do Brasil”. Mas é bom que o leitor aproveite este género de enganos, é bom que se console com os capítulos do livro cuja chacota e sarcasmo fazem finta à tristeza, porque não é só de alegria que se tecem as suas raízes, longe disso.

É certo que assistimos a muitas passagens ensolaradas sim, mas na maioria detetamos sempre uma amargura que as ensombra e balança. No geral, pode-se dizer que estas memórias são como um punhado de peripécias umas vezes mais dramáticas, outras mais cómicas, outras dramáticas e cómicas, mas o que acontece, é que escritas com tamanha naturalidade, adquirem uma dimensão lírica e poética, que não se encaixando em nenhum padrão, se reinventam a cada leitura.

Reinventar talvez seja o verbo padrão da obra deste escritor. Romancista, jornalista, dramaturgo, Nelson Rodrigues soube-se reinventar heroicamente na coluna do jornal onde fundou “A vida como ela é…”, uma crónica que escrevia diariamente(em Portugal todas essa crónicas estão disponíveis também na Tinta Da China). Aliás, se atentarmos à brevidade e ao timbre factual de todos os capítulos podemos estabelecer uma ligação de causa – efeito entre este livro e a sua experiência jornalística. É um registo que espelha um obvio pendor cronista. São capítulos curtos, que partem sempre de algum acontecimento objetivo que o estimulará a divagar, a fazer pontes, cruzamentos, que regra geral irão degenerar sempre para uma estratosfera mais abstrata. Mas, em todos eles o leitor encontra um homem em paz, bem resolvido consigo próprio, com os seus amigos e inimigos, com os seus vivos e os seus mortos, e os seus mortos vivos.

Cinquenta e quatro anos, nascido em 1912, Nelson Rodrigues é um homem que coleciona muitos mortos. «Sempre achei e, o que é pior, ainda acho que cada um de nós tem, na vida, três ou quatro seres decisivos. Se um deles morre, não devemos sobreviver. A vida continua, mentira. Morremos com o ser amado. E se o outro ser amado morre, novamente morremos. Não há pior degradação do que viver pelo hábito de viver, pelo vício de viver, pelo desespero de viver.»

Sem dúvida que a vida deste homem foi pautada por muitas circunstâncias trágicas. O assassinato do irmão; a cegueira da sua primeira filha; as doenças; a morte do pai; a falta de dinheiro; a fome; a promiscuidade jornalística a que sobreviveu; o desabamento das Laranjeiras que lhe levou outros dois irmãos, sobrinhos e cunhada. É dessa maneira emergente, cruel e avassaladora, que somos empurrados para os braços da sua primeira infância, da adolescência, da primeira mulher que viu nua, da segunda, dos primeiros suicidas, das suas primeiras peças de teatro, das suas primeiras viagens até ao Mangue, da primeira prostituta. Somos literalmente empurrados, mas haverá outro jeito de absorver as memórias de alguém que não assim? E depois de empurrados, deixamo-nos perfilar estupefactos diante de dois tempos bem distintos, o “antes das chuvas” e o “depois das chuvas”.

É importante não se deturpar o sentido destes tempos, porque na verdade ele está longe de ser metafórico. É que este “antes” e “depois” refere-se a um acontecimento desastroso que o marcará para sempre, – o desabamento das Laranjeiras. Este desabamento provocou a morte de dois dos seus irmãos e respetiva família. Mas Nelson Rodrigues, mais do que na infeliz ocorrência, ele faz-nos demorar no vestido preto da sua mãe, da mãe que perdeu aqueles dois filhos, netos e nora e que para poupar os restantes filhos da sua dor, fingiu não ter dado conta de nada. (p.40) «Mas disse que a minha mãe não sabe e já me vem dúvida. Talvez saiba e, por compaixão, pena de nós, simule uma inocência desesperadora. Nunca mais perguntou por Mário, Paulinho, nem pelos dois netos, nem pela nora. Só outro dia é que, de repente, suspirou: «Eu quero aquele vestido preto.» Há um suspense na família. Uma das filhas ralha, alegremente: «Mas vestido preto é feio, é triste, mamãe.» Ela tomou um ar meio alado e ninguém entendeu aquela nostalgia do luto. E foi só.» Repare-se no poder da imagem do vestido preto. É impressionante como o vestido preto no mesmo segundo deixa de ser preto, para se descolar da própria ideia de cor e assumir-se como luto. Talvez este seja o esplendor máximo da plasticidade. Esta plasticidade fulgurante na sua obra faz com que se carregue cada cena no colo. É uma plasticidade que faz com que de repente, como que num ápice, das mortalhas das palavras o leitor enrolasse cenas vivas atrás de cenas vivas, coloridas, coléricas, enxofradas. E nessas golfadas vivas ele chega por vezes a sentir-se intoxicado entre elas. Sim, porque há muito de tóxico neste Brasil que o escritor nos serve de bandeja. Há acima de tudo a nudez gratuita, os corpos descartáveis, o carnaval coribântico, a vulgaridade. (p.45) «Nunca a mulher foi tão pouco desejada», (p.67) «E nunca as mulheres se despiram tanto. Muitas usavam menos que a folha de parreira. Foi essa nudez difusa, multiplicada, oferecida, que matou todo o erotismo dos bailes e das ruas. Os homens nem olhavam os nus; ou olhavam com surdo ressentimento e um tédio cruel. Era como se, de repente, nascesse uma incompatibilidade maligna entre os dois sexos.» Mas atenção, não é apenas sobre a banalização do umbigo feminino e da sua promiscuidade barata que o vemos malhar, é também sobre a banalização da morte.

Ninguém mais é chorado em casa, ninguém mais segue a procissão junto da família do morto até ao cemitério, ninguém mais abre as portas de sua casa para junto dos amigos, dos vizinhos e da família verter as últimas lágrimas na presença do morto. Não são só os corpos que são descartáveis, os mortos também o são. O choro já não é vertido, lancinante, aflitivo, é antes omitido, disfarçado, polido como a própria morte. (p.32) «A morte não mais desfila como um préstito», (p.35) essa morte, que «é anterior a si mesma. Ela começa muito antes, é toda uma luminosa e paciente elaboração.» Mas a morte deixou pura e simplesmente de apunhalar, de ser fulminante na sua luz, e essa indiferença, essa ausência de rituais, essa falta de pudor, (“a mais afrodisíaca das virtudes”), na eterna despedida é avassaladora, mas ao mesmo tempo é o que lhe confere o auge de intensidade. (p.31) «Naquele tempo, o sujeito era velado, chorado e florido no próprio ambiente residencial. Tudo era familiar e solidário: os móveis, os jarros, as toalhas e, até, as moscas. De mais a mais, o enterro atravessava toda a cidade. Milhares de pessoas, no caminho tiravam o chapéu. Ninguém mais cumprimentado que o defunto, qualquer defunto. Mas havia o chapéu e repito: tínhamos o chapéu. Pode parecer pouco, mas é muito.» O chapéu, e mais uma vez nos deparamos com a nostalgia dos tempos antigos. O chapéu é uma época, uma hierarquia. «Por vários motivos e mais este, falta-nos o instrumento de reverência, que é o chapéu. Era lindo ver toda a cidade cumprimentando um caixão, mesmo de quinta classe.» Não só neste parágrafo, como em muitos outros assistimos a uma personificação da cidade. Vemos o Rio de chapéu, o Rio de luto, o Rio assassino (p.94) «A rua matou uma pobre adúltera (e talvez nem fosse adúltera, ou «Não sei se a rua D. Zulmira, ou Luiza, ou Maria (era vizinha da rua alegre) induziu uma senhora ao suicídio.», ou, «Morríamos agarrados a Copacabana» (p.141). Esta personificação da cidade, da mesma cidade que (p.129) «se vestiu de cáqui, de botas, até de esporas» faz com que às vezes o Rio se pareça com uma força maléfica, assombrada, e outras vezes, com um perdido, um indigente ou um saudosista ajoelhado a um altar de bondes e bundas, pitangas, praias e cajuada. Ao personificar a cidade, Nelson Rodrigues devolve-lhe de alguma maneira o sopro, a sombra e a carne, porque «afinal o que é a memória senão um pátio de milagres?» Nada. Rigorosamente nada. Mas o mais incrível é que esse pátio de milagres, é um pátio panorâmico, e dele o escritor passa a pente fino entre episódios vários, a hedionda gripe espanhola; a primeira leva de vacinados; a estadia no Sanatório dos Campos Jordão onde esteve internado a curar a tuberculose, a revolução de vinte e quatro de Outubro de 1930 com a passagem da antiga Républica para a presidência de Getúlio Vargas.

Pois bem, Nelson Rodrigues nunca escondeu, e pelo contrário, assumiu desde cedo que era no Brasil machadiano que se revia. (p.67) «E tudo explodiu no sábado de carnaval. Vejam bem: até sexta-feira, isto aqui era o Rio de Benjamim Costallat ou, ainda, do Theo Filho. «Caímos muito de categoria» dirão vocês. (…) Mas o Rio de Machado de Assis ou de Macedo, ou sei lá, estava morto.» E mais, para além de estar morto, para infelicidade de Nelson Rodrigues, não haveria nada que trouxesse Machado de Assis de volta. Não haveria respiração boca, macumba ou ervas curandeiras capazes de o salvar. Pois bem, Nelson Rodrigues não se revia em nada na literatura de Benjamim Costallat, o escritor dos Mistérios Do Rio, Cocktail e Fitas ou de A Luz Vermelha. Os ideais eram precisamente o oposto dos ideais machadianos. Esta referência a Costallat é de suma importância, na medida em que nos obriga a situar no cenário jornalístico da época. Um cenário a querer virar-se definitivamente para a faixa mais devassa e odalisca da sociedade, mais sensacionalista. Mas não era apenas Costallat, o escritor, jornalista e editor que neste meio apregoava um Rio escandaloso e libidinoso. Também nomes como Luiz Edmundo, Figueiredo Pimental, Joel Figueira ou Sylvio Floreal constavam nessa busca armada pelo Rio sádico, vicioso, pelo Rio indecoroso. Mas esse não foi de todo o mesmo Rio de Nelson Rodrigues. O mesmo Rio, nem o mesmo Brasil, porque no seu Brasil (p.185) «nada é mais pornográfico do que o ódio ou a admiração», nem mesmo a memória.

Em A Menina Sem Estrela, a memória é uma carraça pornográfica. Esbravejada, blindada, perversa, calejada, escrita. E só escrita e pornográfica ela poderá ser fecunda, ou então corre-se o risco de seremos dela eternamente órfãos. Em A Menina Sem Estrela o leitor descobre a memória de Nelson Rodrigues como ela é. A memória como ela é…