Uma variante do Sars-Cov-2 que se espalha rápido? Portugal já passou por isso

Uma variante do Sars-Cov-2 que se espalha rápido? Portugal já passou por isso


Uma nova variante do Sars-Cov-2 associada a um aumento mais rápido de contágios na zona de Londres e Kent está em investigação. João Paulo Gomes, responsável pela equipa que analisa os genomas dos vírus que circulam em Portugal, aconselha maior vigilância de quem chega do Reino Unido. A equipa do INSA está a analisar 400…


Poderá vir a ser mais uma pedra no caminho na resposta à covid-19 mas por agora as investigações estão a decorrer e são ainda mais as perguntas do que as respostas. As autoridades britânicas anunciaram nos últimos dias a identificação de uma nova variante do Sars-Cov-2, associada ao rápido crescimento de casos na zona de Londres e Kent. O Governo aumentou o nível de risco naquela zona do país e apertou medidas, com o ministro da Saúde inglês a falar publicamente sobre o tema e a fazer soar o alerta e receios de um super-sars-cov-2, embora neste momento não haja qualquer indicação laboratorial sobre se a variante afeta a eficácia das vacinas ou mesmo se explicará totalmente o aumento mais acentuado de casos de covid-19 no sul do país. Na Europa ainda não foram reportados casos de pessoas infetadas com esta variante noutros países e o Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças ainda não disponibilizou uma avaliação inicial, como aconteceu quando foi identificada uma nova variante em martas. Mas as antenas ergueram-se mais uma vez depois do sobressalto na Dinamarca, onde foram abatidos milhões de visons para conter o espalhamento da variante, associada apenas a casos pontuais de infeção junto de trabalhadores de quintas de criação destes animais. Agora, o caso é um pouco diferente – com algumas semelhanças e uma pergunta que se levanta: poderão ser estas mutações uma vantagem para os vírus?

Vigiar, até porque Portugal já viveu uma “situação análoga” A equipa do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge que acompanha a diversidade genética do SARS-CoV-2 está a acompanhar a situação e já fez uma primeira exposição informativa ao Ministério da Saúde. João Paulo Gomes, responsável pelo Núcleo de Bioinformática e pela Unidade de Investigação do Departamento de Doenças Infecciosas do (INSA), explica ao i o que torna esta variante de interesse acrescido entre os milhares que já foram identificadas desde que começou a epidemia e os próximos passos.

Antes, importa perceber isso mesmo: o SARS-CoV-2 não tem revelado a mesma taxa de mutação que o vírus da gripe – que muda a um ritmo mais rápido e por isso todos os anos são produzidas novas vacinas para os vírus com maior circulação – mas estão sempre a aparecer e já foram identificadas mais de 10 mil variantes distintas. “O SARS-CoV-2 tem 30 mil posições no seu código genético onde podem ocorrer estas mutações. Há muito por onde escolher. E as mutações já apareceram praticamente em todas as posições”, descreve o investigador. “Depois existem combinações de mutações. Há uns que têm três ou quatro, outras sete ou oito, outros dez ou 15. Isso faz com que possamos falar de variantes genéticas. Esta nova variante genética que anda a circular agora no Sul de Inglaterra não é muito diferente das outras, tem mutações que já foram vistas noutros vírus. O que acontece é que apresenta algumas mutações com alguma relevância”, sublinha.

São 17 mutações ao todo nesta variante do SARS-CoV-2 nomeada pelos ingleses de VIU-202012/01. Uma delas afeta a proteína spike – a peça principal do vírus para nos infetar, envolvida no processo de entrada no vírus das células. E surge em particular numa região pequena do código genético do vírus que influencia a forma como esta proteína do vírus se liga aos recetores das células hospedeiras (a posição 501). “É num sítio onde já tinha sido reportada a ocorrência de mutações, mas esta é diferente. As mutações numa mesma região podem ter efeitos diferentes ao nível da proteína. O nosso código genético tem quatro letras. Dependendo da forma como as letras são combinadas no mesmo sítio, a proteína pode ter aminoácidos diferentes”, descreve João Paulo Gomes. A informação epidemiológica é que acaba por tornar a deteção relevante: sabendo que há esta diferença, o vírus foi identificado num contexto de rápido aumento de casos, numa altura já de medidas apertadas em Inglaterra. “Há tantos vírus a circular, com tantas mutações potencialmente interessantes que, para percebermos o que é mais importante, temos alguns indicadores, nomeadamente ver aqueles que se espalham muito depressa”, salienta o investigador. Acresce a isso outro fator: pode ter sido coincidência de ter havido eventos de super-disseminação mas embora a variante não tenha sido identificada na Europa, já o foi nos EUA e na África do Sul. “O aparecimento paralelo em regiões do globo distintas já deita um bocadinho por terra a ideia da existência de um ou dois super-spreaders ou um foco em determinados núcleos populacionais. Portanto do ponto de vista epidemiológico isto é importante.”

E aqui desenham-se os próximos passos. João Paulo Gomes explica que no caso da variantes das martas, foi feito um estudo laboratorial que permitiu perceber, ainda que com uma amostra pequena, que os anticorpos de algumas pessoas infetadas previamente com outros SARS-CoV-2 não respondiam da mesma forma. “Se de repente tivesse um espalhamento massivo na população e se estes resultados se confirmassem a uma escala maior, seria um problema. Mas foi um problema relativamente confinado, associado àquelas quintas e trabalhadores. Neste caso não se sabe ainda”, diz, considerando contudo que foi algo precipitado lançar na população o receio em torno da eficácia da vacina que começa a ser distribuída. “Haver a necessidade de um confinamento mais estrito não tem tanto a ver com esta variante pôr em causa as vacinas. Não sabemos. Agora se há uma zona com crescimento descontrolado de casos, justificam-se medidas de saúde pública, seja com esta ou outra variante”.

O investigador considera que neste momento são precisos mais dados de estudos laboratoriais, por um lado, e por outro a vigilância. E lembra a experiência que Portugal teve na primeira onda, quando os casos disparam na região Norte na zona de Ovar, Lousada e Felgueiras, para explicar o porquê. “Tivemos uma situação análoga em Portugal no início da epidemia. De acordo com a análise que fizemos à posteriori, apercebemo-nos que ao fim das primeiras cinco semanas, 25% dos casos, 4 mil casos em 16 ou 17 mil, eram causados por uma mesma variante genética, tudo devido ao movimento de quatro ou cinco pessoas que terão estado numa feira em Milão. Isso originou quase 4 mil casos, um número brutal. E era uma variante que também teve uma mutação na proteína spike. Analogamente ao que aconteceu em Portugal, isto pode estar a acontecer em Inglaterra.”

Atenção a quem chega do Reino Unido

Para João Paulo Gomes, nesta altura altura faz sentido vigiar se há casos a ser importados. E estando a variante na Europa aparentemente circunscrita ao Reino Unido, ter esse foco. “Haveria um interesse especial em manter uma vigilância de quem chegue de Inglaterra e possa vir a ter diagnóstico de covid-19 ou tenha historial recente de estadia no país”, defende, sublinhando que importa não gerar alarme mas, se possível, ser proativo. “Penso que deve ser um alarmismo q.b. Não é necessário andar à lupa, mas ter alguns cuidados”, sublinha. O i tentou perceber junto da DGS quantos caso diagnosticados em Portugal tinham ligação ao Reino Unido e se está prevista alguma medida, mas ontem não teve resposta. Aumenta o risco depois do Natal? Muito do que se possa dizer a esta altura é especulativo mas poderá a disseminação desta variante contribuir para um aumento mais rápido de casos depois do aumento de contactos no Natal, inclusive com pessoas que possam viajar para estar com as famílias? “Espero que não. Tendo em conta os dados que existem, não estará minimamente difundida na Europa. Há esse perigo, mas não creio que tenhamos dados que permitam pensar nisso”, responde João Paulo Gomes, que defende no entanto falar de terceira vaga quando ainda se está longe de esmagar a segunda pode ser precoce e concorda que possivelmente haverá um aumento de casos depois das festas.

Por agora, a equipa do INSA deverá ter dentro de alguns dias uma primeira fotografia dos vírus que circulam em Portugal nesta segunda vaga da epidemia, depois do primeiro estudo feito com os genomas de cerca de 2 mil vírus que infetaram portugueses na primeira vaga. Será então possível perceber se numa amostra de 400 vírus, de vários pontos do país, surge já a variante inglesa ou mesmo a das martas na Dinamarca. João Paulo Gomes explica no entanto que o objetivo é uma caracterização mais ampla e uma das questões em que estão mais interessados leva-nos de novo à zona de Felgueiras e Lousada, onde se viveu uma maior explosão de casos nesta segunda vaga, depois de uma primeira travada com a cerca sanitária em Ovar. “Queremos tentar perceber se a variante que originou a primeira vaga massiva ainda está a circular ou não. Depois do primeiro período do estado de emergência, houve quase um desaparecimento, mas queremos perceber se continuou a circular ou não e se houve uma reativação.”

Fronteira entre espécies preocupa

João Paulo Gomes explica que no caso desta variante, que veio de Milão, os primeiros casos o vírus era 100% igual ao que foi reportado na Itália. Foi identificada noutros países, nuns casos com historial de viagem, mas noutros sem. E o interesse é idêntico a que se coloca agora: “Quando as mesmas mutações surgem mais ou menos ao mesmo tempo noutras partes do globo, questionamo-nos se aquela mutação foi mais ou menos favorecida. Ou seja, se isso acontece porque existe alguma vantagem para o vírus”.

No caso da variante inglesa, há um aspeto que, mais uma vez, faz levantar as antenas. Um artigo publicado na Science, com resultados de ensaios com ratinhos, mostrou que mutações na posição N501 do SARS-CoV-2, como acontece na variante de Inglaterra, parecia infetar com maior frequência a estes animais, podendo ser uma pista de maior adaptação a outros hospedeiros, descreve o especialista. “Estas mutações nos locais de ligação aos recetores das células são mutações importantes para serem monitorizadas porque são com certeza responsáveis pela passagem da barreira das espécies. Se este novo coronavírus se tornasse uma zoonose típica, ou seja muitíssimas espécies animais poderem ser hospedeiros e nos poderem transmitir o vírus, passaríamos a ter um problema maior”, resume João Paulo Gomes. Até aqui, depois da transmissão para humanos, a maioria dos casos têm sido de infeção em humanos, mas houve relatos de infeção em felinos e mais recentemente nas martas. “Imagine que se adaptava extraordinariamente bem aos nossos gatos e cães. Se este tipo de mutações favorecerem a colonização de animais muito próximos do ser humano e eventualmente até não lhes fizer nada, mas passarem a ser agentes colonizadores, esse é que é que pode ser o problema, porque a nós faz-nos sempre mal. E uma coisa são morcegos ou pangolins, animais com os quais o contacto é mínimo. Outra coisa seriam animais de companhia. E a preocupação tem a ver com isto: haver mutações que podem dar possibilidade ao vírus de fazer evoluções e adaptações a animais com os quais podemos contactar”.

Por agora, continuam a ser ideias à espera de resposta, ao mesmo tempo que se coloca novas perguntas: a vacinação em massa no próximo ano poderá pressionar o vírus a mudar mais? João Paulo Gomes explica que procurar respostas é um dos objetivos da equipa do INSA para os próximos meses. Ao mesmo tempo que se mantêm a vigilância dos vírus a circular, vão tentar perceber se acontece com o SARS-CoV-2 o mesmo que aconteceu com bactérias como o meningococo ou o pneumococo. “O que se verifica é que depois de a vacinação estar no plano, ao fim de uns anos começam a desaparecer as variantes, no caso das bactérias os serótipos, mais comuns e aparecer aquelas que não tinham expressão mas a vacina não foi feita contra elas.”

INSA vai investigar casos de falência vacinal

Para vigiar, o INSA está a preparar um projeto de monitorização de casos de falência vacinal, em que uma pessoa vacinada contraia na mesma o vírus, e colheita de amostras para serem sequenciadas, adianta João Paulo Gomes, sublinhando que a vigilância, que acontecerá noutros países, será crucial para ter respostas. O pior cenário? As farmacêuticas terem de se adaptar para produzir regularmente novas vacinas anualmente, como acontece com a gripe. E no imediato, como fica o combate à pandemia? “Creio que não pode comprometer o objetivo de imunidade de grupo, mas poderia diminuir um pouco a eficácia da vacina ao longo do tempo.”