O espião era outra patranha na cultura popular: uma fachada ilusória e sedutora que começou a descascar à medida que se tornava palpável a tensão vivida no interior. Discussões a altas horas, um rabo-leva de suspeições, frases enigmáticas, gritos abafados; sinais de que algo não estava bem, e de que nem aqueles que estão por dentro, os que protegem os segredos de Estado, parecem saber exactamente o que se passa. Os motivos da noite pareciam cada vez mais estranhos aos imperativos do dia. Mas demorou para que esse ângulo furtivo fosse exposto. A cultura popular vive de fixações um tanto imaturas. E antes de John le Carré, o espião era mais outra cortina de fumo, outra manobra de distracção. Foi este escritor inglês que trouxe ao género, dominado até então por Ian Fleming e o seu James Bond, os suores nocturnos, a angústia de estar só. A nuance foi corroendo aos poucos o figurão que, não só estragava os planos aos pulhas que falavam inglês com um terrível sotaque, mas nisto ainda tomava balanço para se meter na cama com todo o tipo de beldades. Bond era a campanha promocional, mas foi com George Smiley que o público conheceu os efeitos secundários, e ainda todos os aspectos que escapam ao mito, a esse lado glamoroso e ao contraste espectacular entre o bem e o mal.
Com os seus enredos cheios de elementos insolúveis, aspectos intrincados que traduziam o ambiente de paranoia do período da Guerra Fria, não só o género conspirou para se elevar ao nível da melhor literatura, como o conflito entre os agentes de um e do outro lado da Cortina de Ferro, se tornou um laboratório para a infinitamente complexa escala dos logros e enganos que pontuam o labirinto das relações humanas. Num artigo na “The New Yorker”, o historiador Timothy Garton Ash sublinhava como nos romances de Le Carré a traição surge como uma das variações do amor, e como a mentira era uma forma da verdade, e dava, por fim, emprego na ficção a esses homens que conseguem representar o que há de melhor na humanidade e mesmo assim estão do lado errado da história, ao passo que muitas vezes autênticos cretinos calham estar ao serviço do bem.
“Chame-lhes romances de espionagem, já que a identidade do espião é tão próxima da natureza do indivíduo que o leitor não tem problema em identificar-se com ele”, disse John le Carré numa entrevista. “Compactuamos muito e construímos muitas pontes falsas. Todos nós andamos por aí a nutrir pensamentos secretos que nunca comunicamos — nem mesmo àqueles a quem amamos mais. Talvez precisamente pelo amor que lhes temos. Moldamos uma identidade a partir do que compactuamos connosco. E temos a máscara que vestimos quando nos apresentamos diante das pessoas, a maneira como vestimos o nosso disfarce, como moldamos as nossas vozes ou olhamos uns para os outros. São todos o fazer de conta que fazemos na vida.”
O que ganhou relevo através da obra deste antigo espião que morreu no sábado, aos 89 anos, na sequência de uma pneumonia, foi o lado pessoal e trágico da vida desses homens que vagueiam obscuros por cidades que odeiam, que abjuram da sua honra, compram consciências e traem aqueles que os tomam por amigos, indo ao ponto de perder todo o compasso moral, resignando-se à infâmia, como dizia Borges num poema, antes de o espião dar por si a abominar o nome da sua pátria. Proibido pelos seus superiores de assinar os romances, John le Carré nasce como mais outro ensaio deceptivo de David John Moore Cornwell, que na altura em que foi escrevendo à mão, numa série de cadernos, o primeiro dos seus livros, “Chamada para o morto” (1961), tinha não uma vida dupla mas tripla, como diplomata, espião e romancista. A inspiração veio de um colega do MI5, o romancista John Bingham, e não se ficou pela ideia de cozinhar uns enredos a partir das suas experiências, do seu conhecimento do mundo dos serviços secretos, mas Bingham foi também o modelo que decalcou ao criar a personagem que acabou por estar no centro de um mundo fechado que reflecte e, ao mesmo tempo, parece concentrar toda a realidade. George Smiley tornou-se o observador ideal, e fez ver a idiotice de pretender que um espião possa ser um personagem imensamente exuberante e que concentra todas as atenções mal entra numa sala. No sentido oposto, Smiley era uma figura espantosamente discreta: calado, metido consigo próprio, “baixo e roliço, com óculos pesados e cabelo ralo (…), protótipo do solteirão falhado de meia-idade com um emprego sedentário”, de acordo com a descrição de uma velha amiga em “Um Crime Quase Perfeito” (1962), o segundo livro de Le Carré. E se os enredos exploravam os dilemas morais e essas fracturas entre a devoção a uma causa e a impensável sujeira que a sua defesa obriga, estes não passavam de ficções urdidas por uma mente que sabia como as coisas se passam. De resto, antes de serem publicados eram submetidos a aprovação para garantir que nenhuma informação sensível era revelada. Contudo, depois de ter dado 16 anos da sua vida tanto ao MI6 como à sua contraparte doméstica, o MI5, havia um selo de verosimilhança que fazia com que o ar bastante frio que se respirava nos seus romances desse aos leitores a confiança de estarem do outro lado do espelho, observando a realidade nua e crua, de tal modo que muita da gíria que ele usou acabou por ser adoptada não apenas pela cultura popular mas pelos próprios agentes secretos britânicos, um pouco à semelhança do que aconteceu com a máfia, que acabou por absorver na sua mitologia a linguagem de “O Padrinho”.
E o sucesso chegou à terceira tentativa, em 1963. “O Espião que Saiu do Frio” foi alvo de súbita aclamação e tornou-se um best-seller instantâneo, sendo traduzido em todo o mundo. Na altura, Graham Greene – também ele um escritor que tinha um passado como espião – não hesitou em reconhecer que se tratava da melhor história de espionagem que já lera. O livro teve um impacto de tal ordem que se desenhou um antes e um depois da sua publicação. “De certa forma, veio traçar uma fronteira entre duas eras”, escreveu o guionista e crítico Stephen Schiff na “Vanity Fair”. “De um lado tínhamos a era do patriotismo Deus-está-do-nosso-lado, em que era depositada grande confiança no governo e na moralidade do Ocidente, e do outro tínhamos a era da paranoia, das teorias da conspiração e da malha crescente de suspeitas envolvendo o governo, arrastado pela deriva amoral.” O livro que não demoraria a ser adaptado ao cinema, com Richard Burton como protagonista, marcou também o fim da carreira de espião de Le Carré, isto depois de um jornal britânico ter revelado a sua verdadeira identidade. Mas foram as espectaculares vendas o que lhe permitiu deixar a função pública e dedicar-se inteiramente à escrita. Contudo, mesmo enquanto autor celebrado, com romances que se sucediam e encontravam um público sedento, Le Carré nunca abdicou de um certo grau de reserva, esquivando-se ao lado mundano da vida literária, e impedindo que os seus editores submetessem os seus livros a prémios literários. Deixou ainda claro que não aceitaria ser investido como cavaleiro ou qualquer outra honra do Estado, e não faltaram os convites. “Não quero ser chamado de Sir David, Lord David, Rei David. Nenhuma dessas coisas me anima. Na verdade, acho tudo isso de uma presunção ridícula.”
Nascido em 1931 na cidade portuária de Poole, em Dorset, bem antes de se tornar espião, a biografia do homem que passa a história como John le Carré trazia já um balanço absurdo no que toca a decepções. Em grande medida, a planta original, a rede de subterfúgios, ficções elaboradas e esquemas, o aspecto amoral e tão incerto que nutre a obra deste autor é um desafio no qual se viu mergulhado desde a infância, dominada por um pai que era um trapaceiro estupendo, homem com uma lábia prodigiosa e uma capacidade de arrastar tudo e todos nas suas fantasias, deixando um rastro de caos à sua passagem. Ronald passou a vida a sair e entrar da prisão condenado por fraude, e viveu entre extremos, de momentos de penúria a outros em que usufruía de luxos extravagantes, e de tantas vezes engolir humilhações, acabou digerindo qualquer vestígio de dignidade, estando sempre a engenhocar um golpe qualquer: a sua lista de calotes e dívidas era infindável. Num certo sentido, era um nativo desse mundo de sombras e ilusões à qual nenhum de nós escapa, mas se quase todos não passamos de amadores, ele profissionalizou-se. E o seu círculo era preenchido tanto por celebridades como por um vasto elenco de personagens de carácter duvidoso.
“Manipulador, poderoso, carismático, sagaz e absolutamente indigno de confiança”, assim o descreveu o filho. Nos últimos anos, Le Carré desabafou não poucas vezes com os seus entrevistadores sobre as indignidades a que foi sujeito. “Não podes imaginar o quão humilhante é, para um miúdo, ver subitamente as tuas roupas e os teus brinquedos todos serem levados por um oficial de justiça”, disse numa entrevista. E isto tudo sem nunca se ter refeito da perda da mãe, que abandonou a família quando ele tinha cinco anos, fugindo com outro homem. Talvez para escudá-lo da dor, mas também para esconder de todos e de si mesmo a traição. O escritor contava que tudo ficou meio embaraçado entre as recordações e as mentiras, com o pai primeiro a explicar a ausência da mãe com uma doença, acabando depois por dizer que ela tinha morrido. David só voltaria a reencontrar-se com ela passados 16 anos.
Mas se Ronald Cornwell era capaz de todo o tipo de crapulices, tinha os filhos como parte integral da sua fantasia de ascensão e da sua ânsia de afirmação social, e David frequentou boas escolas… rigídas, muitíssimo exigentes. Depois da preparatória, passou ao internato em Sherborne, e detestou-a de tal modo que, com 16 anos, quis ver-se livre de tudo, fugir do do pai e do país, e foi para a Suíça, tendo-se matriculado no curso de línguas modernas na Universidade de Berna. Foi aí que acabou por ser recrutados por um espião infiltrado na embaixada, e foi assim, no rescaldo da II Guerra, que David começou a trabalhar como oficial de informações. Viria a interromper o serviço durante dois anos, nos quais deu aulas em Eton, o prestigiado colégio para rapazes de onde têm saído sucessivas fornadas que abastecem a elite da vida cultural e política britânicas.
Quanto ao sucesso, nunca o comoveu, e durante décadas em que a imprensa insistia e esbarrava num muro, vendo-se forçada a pintar a imagem de um autor retirado, misterioso, quando Le Carré simplesmente não tinha paciência para entreter outros circos nem andar em romaria no circuito dos festivais literários. E, por isso, foi uma supresa para todos quando, em 2016, publicou um livro de memórias, “O Túnel de Pombos”, em que, não apenas falava do seu passado como espião, como detalhava os aspectos mais desoladores e sórdidos da sua infância e da tumultuosa relação com o pai. Depois de quatro décadas a viver na Cornualha, tendo-se casado duas vezes, e criado quatro filhos – incluindo Nicholas, que se tornaria também ele romancista, assinando com o nome Nick Harkaway –, Le Carré admitiu que também ele nunca conseguiu ser grande coisa como marido ou sequer um bom exemplo para os filhos, admitindo que se houve uma verdadeira paixão a que se dedicou foi à escrita. Nos últimos anos, foi tolerando de forma cada vez mais afável a popularidade dos seus romances ou dos filmes e séries a que estes deram origem, e então, foi abrindo brechas, deixando que os jornalistas subissem até à sua casa num penhasco da Cornualha, acompanhando-o nos seus longos passeios. Revelou-se então ele mesmo um personagem fascinante, dotado de um humor penetrante e seco, com uma memória impossível de onde arrancava espantosas anedotas e incidentes que cosiam pela sombra a lembrança à sua capacidade de efabulação. Era uma voz crítica, muitas vezes incómoda nas posições que foi assumindo, sobretudo na dureza face à política externa dos países ocidentais, e, em particular, depois da invasão do Iraque pelos EUA e a Grã-Bretanha, em 2003. Além dos jornalistas, ao longo dos anos quem também o solicitava muito eram os espiões, que, segundo o “the Guardian” o tratavam como um oráculo da profissão. Espantava pela sua capacidade de falar em frases que podiam igualmente estar a ser escritas, pela elegância da construção, a verve e o humor. E as suas entrevistas são um modelo para todos os escritores pela clareza exemplar do seu pensamento, e porque, por mais entrevistas que tenha dado, nunca ter cedido à tagarelice. “Do mundo de segredos que em tempos conheci, fiz o que pude para criar um teatro para as palavras maiores que habitamos”, escreveu. “Primeiro vem a tarefa de imaginá-lo, depois vem a busca da realidade que o preencha. Depois volto à imaginação, e acaba então sentado à secretária onde me encontro agora.” E, assim, para muitos dos seus leitores, sempre que a realidade se comportar à altura, adequando-se a um enredo elaborado, revelador e cheio de espessura, a sensação será de que ele ainda estará sentado àquela secretária, e que nós podíamos ser personagens num último e para sempre adiado romance.