A leitura atenta de alguns jornais portugueses e estrangeiros não pode, se não, deixar-nos preocupados.
A propósito deste e daquele fenómeno – uns de natureza política, outros de características mais diretamente económica, outros de configuração político-religiosa, outros, sobretudo, de caráter sanitário, outros, ainda, incidindo mais sobre a vertente criminal de alguns dos anteriores – muitas são as notícias dos que, na Europa, procuram e querem aplicar soluções que passam, sobretudo, pelo controlo dos cidadãos, a limitação das garantias previstas nas cartas de direitos, a vigilância de formas de expressão política, ideológica e religiosa, a consagração de soluções gravemente derrogantes dos princípios essenciais do processo penal democrático.
Não, não estou a falar apenas dos países onde vigoram, como agora se diz, democracias quase iliberais.
Tais medidas vão sendo discutidas, introduzidas e aprovadas também nas chamadas democracias históricas.
Claro está que que as democracias históricas têm a sua própria história e que cada uma dessas histórias é diferente da outra, justificando arquiteturas constitucionais e legais distintas.
Por isso, não raro somos surpreendidos e ficamos chocados com as soluções que nelas foram sendo adotadas, pois, do ponto de vista do país onde nos encontramos, sempre as considerámos contrárias a princípios democráticos.
Tomemos como exemplo algumas soluções jurídico constitucionais para garantir a independência da Justiça e das magistraturas existentes na Europa.
Pugnando, e bem, por um modelo que julgamos comummente aceitável – a existência de conselhos superiores de magistratura – deparamos, depois, com exceções que a todos espantam e, em alguns casos, nos esforçamos por ignorar.
Na Alemanha, por exemplo, apesar de a questão ter sido frequentemente discutida, ainda hoje a magistratura não é governada por um Conselho Superior ou por qualquer órgão coletivo que se lhe assemelhe e que contemple uma componente eletiva e democrática, como exige o Conselho da Europa, em nome de um modelo comum europeu de independência da Justiça.
Em Espanha, por outro lado, são os partidos representados no parlamento – e não os próprios juízes – que escolhem os magistrados que integram o Conselho do Poder Judicial.
Na França, por outro lado, alguns instrumentos legais adotados no combate ao terrorismo, no que se refere, por exemplo, à imediata validação de detenções policiais de suspeitos da colaboração em atentados, seriam, entre nós, considerados absolutamente inconstitucionais.
Em outros países, as escutas às comunicações dos cidadãos podem, mesmo na criminalidade corrente, ser feitas sem autorização judicial, ainda que, depois, em alguns deles, as respetivas gravações não possam ser usadas como prova em julgamento.
Todavia, dessas profundas diferenças e dos distintos e assimétricos sistemas constitucionais e legais de liberdades e garantias que continuam a existir na Europa pouco se fala nos fóruns e nos media europeus.
E, no entanto, essas mesmas questões não deixam de estar presentes no dia-a-dia da vida forense e sempre que se aborda o respeito pelos princípios do Estado de Direito no seio da União Europeia e a adequação dos sistemas constitucionais e legais de certos países de quem se diz que caminham agora, a passos largos, para democracias iliberais.
Do que, ultimamente, se tem falado mais insistentemente – e ainda bem – é das propostas de proibição da difusão das filmagem de cenas violentas protagonizadas por forças policiais, do controlo informático de mensagens mediáticas negacionistas sobre o Covid ou causadoras de distorções em processos eleitorais, do controlo dos discursos religiosos – sobretudo os de inspiração islâmica – e da introdução dos novos e cada vez mais intrusivos mecanismos de investigação nos processos criminais por crimes de corrupção e congéneres: e tudo em países com democracias firmadas.
Mas sobre tais assuntos, com uma candura quase arrepiante, vamos assistindo e lendo intervenções várias de quem sempre alardeia ter defendido as liberdades democráticas – nelas se incluindo a privacidade dos cidadãos e o direito a um processo justo – mas reivindica, agora, continuada e acriticamente, mais políticas, mais instrumentos e medidas que, sem dúvida, as cerceiam decisivamente.
Quem viu, recentemente, na RTP2 duas séries – uma francesa e outra italiana – sobre a vida política e criminal desses países, poderá compreender melhor, contudo, como, nem sempre, a introdução sucessiva de mais e mais medidas restritivas das liberdades, ou corrosivas de um processo justo, é capaz de sustar a sua degradação cívica, política e económica.
Ora, os livros e as séries policiais desse tipo constituem, nos nossos dias, a verdadeira expressão da corrente realista da arte; aquela que ainda procura revelar as teias do que deveras sucede na sociedade e pretende ter sobre esta um olhar crítico.
E essas obras mostram bem os becos sem saída a que a insistência exclusiva em soluções puramente policiais e judiciárias conduz as democracias e a crise de credibilidade que acarreta para a própria justiça.
Será que os defensores sérios de tais propostas não percebem que estão, sobretudo, a favorecer quem não quer que nada mude e, para tanto, necessita de limitar, de qualquer jeito, as garantias e liberdades que caracterizam a democracia?
Se não gostam de ficção e de livros e filmes policiais modernos, ou duvidam do seu genuíno realismo, leiam, ao menos, a mais clara e direta encíclica papal Fratelli Tutti. Talvez aprendam alguma coisa.