Oriunda de uma família judia, nascida em Tchetchelnik, a sua família viu-se forçada a fugir da perseguição cerrada aos judeus durante a guerra civil russa (1918-1920). Assim sendo, o Brasil, mais propriamente o Nordeste e o Rio de Janeiro serviram-lhe de cenário geográfico e humano para muitos dos seus romances, crónicas, poemas e histórias infantis. Depois de divorciada, retornou ao seu Brasil com os seus dois filhos onde aos cinquenta e seis anos, um dia antes do seu aniversário, acabaria por morrer.
Em Portugal podemos encontrar toda a sua obra publicada na editora Relógio D’Água.
Vale a pena recordar a sua única entrevista televisiva no programa Panorama, precisamente no ano do seu desaparecimento (1977). Nessa entrevista, a escritora surge sentada numa cadeira de couro, a celebre poltrona mole do designer Sérgio Rodrigues, a responder pausada e desconcertadamente a uma série de questões levantadas pelo jornalista Júlio Lerner. Impressionante, como em nenhum momento da entrevista encontramos uma Clarice tranquila, confortável. Pelo contrário, vemo-la com os olhos rasos, os lábios hirtos e os dedos a procurarem como num palheiro, um cigarro num clima de alarmante tensão e sobrecarga. Esse clima tenso há-de encapelar todos os seus enredos, as suas personagens neuróticas, o próprio Brasil manso e embriagado, bramoso e diabólico.
“Quando comecei a escrever inventei uma história que não acabava nunca.” E foi essa mesma história que não acabou nunca, essa história que até aos dias de hoje ainda nos mantém estarrecidos em seu poder.
Nessa mesma entrevista, também a ouvimos declarar como num mandamento “Estou meio cansada de mim mesma. Agora eu morri. Vamos ver se renasço de novo. Estou falando do meu túmulo.” Pois bem, na verdade parece ser do interior de um túmulo que brotaram todos os seus enigmas descarnados. Mas a sua ginga interior, os seus suplícios, as suas obsessões, os seus martírios, as suas casas, as suas fantasias, a sua insatisfação e o seu cansaço, parecem saídos de um túmulo maternal, quadriculado, exótico, denso e raro ao mesmo tempo. Um túmulo húmido escoiceado de solidão e carnaval, de renúncia e plenitude, de amor, de um mal-estar absurdo, de medo e desapego. E era também com desapego que falava de si própria “Quando não escrevo, estou morta.” Com desapego e com os érres arrastados. Mas no fundo não era só esta consoante que trazia arrastada e enrolada na língua, era a morte e a vida, as traiçoeiras relações humanas, os sonhos rasteiros, o que de mais íntimo e sujo nos finta e consome. “Quando não escrevo, estou morta.” É com esta sua frase que aqui se encerra este ciclo de citações dessa, que foi a sua primeira e última entrevista em televisão. Essa ideia de morte e o peso da eternidade serão sem dúvida o campo a céu aberto que é sua linguagem. Uma linguagem embebida em feridas por remendar, em sobras de alegrias, em puro desassossego vigilante. É, por isso, uma literatura resgatada de uma inquietude heróica. Lispector, não sendo nativa, é a mulher Brasil que o engole por inteiro, o rumina com urgência, como se ao ruminá-lo com raiva e desespero, com indolência e racionalidade o unificasse, o erguesse, o purificasse. Purificasse no sentido de lhe açoitar as fendas invisíveis, os segredos, o vazio.
Em todos os seus livros há um Brasil que ora transborda, ora se esvazia, que ora se despedaça e nos despedaça, ora nos machuca, apoquenta e apazigua. Mas, geralmente, é sempre um Brasil insaciável, atiçado, pronto a pisotear e a sacudir-nos. O seu Brasil é um território vibrátil em constante alerta, e por isso é habitualmente falsa a sensação de segurança. Segurança interior, estabilidade. Por exemplo, as suas personagens, na grande maioria femininas, são temperadas por uma avassaladora angústia. São mulheres suspensas em ponto bala, mulheres que, desejando demais a liberdade, também a acabam por temer. Mulheres que, questionando demais a realidade, a família, a casa, o casamento, a fidelidade, a palavra, a natureza, também se permitem diluir no seu veneno morno. Mulheres que, por perscrutarem a fundo o seu passado, voluntariamente soçobram. Daí ser fácil pressentir que em toda a atmosfera de Lispector há uma teia minada por uma ingenuidade desarmoniosa, cujos contornos nos impossibilitam de voltar atrás. É uma desarmonia labiríntica, descontinua, interrompida sem pressa por pequenas e obscuras decepções, dissabores do quotidiano, engulhos conjugais, desejos em contramão.
Pertencendo à Geração de 45, naquela que foi a terceira vaga do modernismo brasileiro, destacou-se juntamente com Mário Quintana, João Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Lygia Fagundes Telles, João Cabral do Nascimento Neto num universo intimista em perfeito equilíbrio com uma ideologia existencial. Por todas as razões, interessa recordar João Cabral do Nascimento Neto, que lhe dedica um poema maravilhoso "Contam de Clarice Lispector".
Este poema, inserido no livro Agrestes (Poesia 1981/1985), é quase uma caricatura da escritora. Caricatura não no sentido pejorativo, antes no sentido epopeico de ir ao encontro do seu pormenor mais sui generis, da sua autenticidade, do seu vulto. “Um dia, Clarice Lispector/ intercambiava com amigos/ dez mil anedotas de morte,/ e do que tem de sério e circo. // Nisso, chegam outros amigos, / vindos do último futebol, / comentando o jogo, recontando-o, / refazendo-o, de gol a gol. // Quando o futebol esmorece, / abre a boca um silêncio enorme/ e ouve-se a voz de Clarice: / Vamos voltar a falar na morte?”
Como vemos, é sempre a morte, ou a gravidade do eterno, esse pavor que vemos ser transladado história após história, senão atentemos o seu texto "Medo da Eternidade" inserido no livro A Descoberta do Mundo.
Aqui, o farol narrativo presente é, sem dúvida, como o próprio título indica, o pavor do para sempre. Este pavor é invariavelmente uma constante na sua obra. Nada lhe é passageiro, leve, fugaz porque tudo é intenso e vivido no cume, mas ao mesmo tempo tudo lhe parece também transitório, efervescente, meteórico. Tudo e nada é motivo para uma reflexão carcomida, aflitiva onde, a toda a hora, um dilema em espiral parece sempre disposto a sobrepor-se ao pensamento presente. São acima de tudo essas reflexões que, se nos desarmam, também nos molestam.
Mais do que nos seus romances, talvez seja nas crónicas ou nos contos que esses dilemas levantam ainda mais a fundo a poeira do seu turbilhão existencial. Este "Medo da Eternidade", por exemplo, é uma breve crónica cujo momento angular se prende na imagem metafórica de uma chiclete cor-de-rosa. Nele, estamos perante um regresso assustador à infância, aos primeiros sabores e temores, às primeiras aflições. Duas irmãs, uma chiclete. Dois hemisférios no meridional da linha imaginária e fugidia da eternidade. Duas percepções antagónicas do mundo, e, mais uma vez, rumamos ao encontro da primeira história que escreveu, aquela que não acabava nunca, aquela que talvez tenha mesmo rasgado e jogado fora. A eternidade em Clarice é, por isso, sempre esse vazio sem âncora e sem rumo, uma asa afundada (como os peixinhos vermelhos que cheia de remorsos deixou morrer), uma cor desmaiada, “um puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada”, uma completa desilusão.
A sua literatura, tal como se pode comprovar nesta crónica, é prova viva de uma literatura que, ao contrário daquela chiclete cor-de-rosa, aquela que “dura a vida inteira”, não dá para se mastigar nunca, porque só quem mastiga é obsequente, submisso, imoto. Quem mastiga sufoca, borra-se de medo, de culpa. Quem mastiga nunca alcança, quem não mastiga também não, mas em Clarice a diferença está exclusivamente no alívio. A irmã que nunca tinha provado o sabor da chiclete, deita-a fora de repente, e só aí se sente aliviada, liberta daquele sufoco, daquela ansiedade desabrida.
Depois de lida esta crónica não será difícil encarar a sua escrita como um manifesto violento, desencaixado, fora do trilho. Afinal, as suas palavras são como a chiclete cor-de-rosa cuspida com disfarce, horror e alívio. «- Olha só o que me aconteceu! – Disse eu em fingidos espanto e tristeza. Agora não posso mastigar mais! A bala acabou! – Já lhe disse, repetiu minha irmã, que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá. Eu estava envergonhada diante da bondade da minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle da boca por acaso. Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim!»
Sobre Lispector, Fátima Maldonado, no seu livro Resgate (Averno, 2017, p.106) escreveu «O que em literatura se tornou corrente – observar com minúcia o que a traço grosso se pode designar por estados de alma, a atenção concedida aos mesquinhos pontos que desenham cada vida sujeitando-os a traduzir horas, êxtases, deficiência ou luto – era, como todos sabemos, até à revolução quase coperniciana que inaugurou com Ulisses no princípio dos anos 20, uma impossibilidade, escândalo ou heresia. Mas nada tendo a ver com Joyce, tal como sempre fez questão de sublinhar, Clarice Lispector publicou na literatura brasileira a cesariana que lhe permitiria unir-se à modernidade ignorando as restritas regras que a manietavam.»
Ignorando, ignorando sim, e na verdade foi assim que Clarice se afirmou entre a geração de 45. Sendo uma das escritoras da terceira fase do modernismo brasileiro, foi sem duvida a que se viu mais acusada de ser hermética. Sobre isso, Clarice dizia não perceber como, se ela própria se entendia tão bem. Debruçando-se sobre o seu léxico literário, a escritora aponta apenas um conto em que concorda com essa acusação, "O Ovo e a Galinha". Quanto a esse único conto sim, ela admitia ser um mistério também para si própria.
Um mistério, aí está a raiz abençoada e feraz do seu legado. Vale a pena demorarmo-nos por um instante neste conto. Nesta curta narrativa estamos na presença de um conteúdo supra existencial. Aqui o existencialismo atinge o grau superlativo absoluto supra analítico. Clarice vê o ovo, Clarice não vê o ovo, Clarice julga ver o ovo. Porque o ovo não é só aquilo que ela julga que vê, porque o ovo é sempre outra coisa, porque o ovo omite, é invisível, é esdrúxulo. Porque o ovo é a dor, é a fome e é a ausência da fome. Porque o ovo é o abismo, é nenhuma resposta, é a doença e a cura. Porque o ovo é isso tudo e não é nada ao mesmo tempo, porque “ninguém é capaz de ver o ovo”, porque falar de um ovo é falar de uma galinha. Mas Clarice só entende o ovo quebrado.
«É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem já viu o ovo, um sacrifício.»
Nesta passagem, bem firmes e de pé estão outros dois estandartes da sua trégua, o sacrifício e o prazer. É que «gostar de estar vivo dói.» É sempre esta dor, este ferimento agudo, a dicotomia luminosíssima do seu gume, e é por isso que a sua literatura é de rapina. Implacável, carnívora, ágil, certeira. «Por devoção ao ovo, eu o esqueci. (…) Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta.» Aberta e ao mesmo tempo recurvada, côncava como a superfície maliciosa e estranha de um búzio negro, assim é a aura de todas as suas narrativas.
Este é sem dúvida um conto sinuoso, a começar pelo título, mas ao ovo, à galinha, junta-se a narradora na primeira pessoa do singular e o “eles”. Há, portanto, quatro intervenientes directos a participar neste conto, sendo que apenas um dos intervenientes nos surge num plural em marcha, uma marcha tumultuosa e ameaçadora (p.253) «Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada?»
Melancólica, dengosa, acurada, enigmática. A Clarice, quando lhe perguntavam de onde vinha o Lispector, ela respondia que vinha do latim, como se o latim fosse uma língua que em vez de morta simplesmente não pertencesse já a este mundo. Do latim, a mulher com a flor de lis no peito.
O Cinema Trindade para assinalar esta data tem em cartaz apenas hoje, o filme de Suzana Amaral A Hora Da Estrela. Este belíssimo filme ganhou o Urso de prata de melhor realizador e melhor atriz (Marcelia Cartaxo) no Festival de Berlim em 1986.
Ainda nessa celebre entrevista que Clarice deu no Panorama, ela falou deste romance, que tal como a entrevista, seria o último que publicaria. «Era uma moça tão pobre, que só comia cachorro quente. A história não é só isso não. A história é de uma inocência pisada, de uma miséria anonima.»
O cenário é o Rio de Janeiro, mas a personagem principal, Macaeba, uma dactilógrafa de dezanove anos é nordestina, de Alagoas. Mal sabe escrever, desconhece um montão de palavras, escreve Brasil com minúscula e z. Não é bonita, nem atraente. É uma virgem que gosta de cachorros quentes e coca-cola. Uma rapariga que não conhece ainda o cheiro de nenhum homem. Divide o quarto miserável com mais três raparigas miseráveis, até que um dia vai a uma cartomante e a sua vida muda vertiginosamente. Merece destaque esta cartomante, interpretada pela fabulosa atriz Fernanda Montenegro.
Ainda a propósito deste romance, Clarice confessou: «Eu morei em Recife, eu morei no Nordeste, eu me criei no Nordeste. (…) Um dia no Rio eu fui no campo de São Cristóvão e peguei o ar meio perdido do nordestino no Rio de Janeiro. Daí começou a nascer a ideia.» Depois disso Clarice contou que tinha ido a uma cartomante que só lhe disse coisas boas, mas no fim quando apanhou um táxi achou que talvez tivesse piada ser atropelada, talvez como pretexto para ver contrariado o seu próprio destino. «E daí começou a nascer a trama da história.»
Maravilhosa história. Maravilhosa Clarice.