1. As democracias devem ser regimes de transparência nos quais os cidadãos têm acesso à informação sobre a forma como o Estado está a funcionar. É assim em teoria e, na prática, no norte da Europa. Mas quanto mais para sul, menos transparência. E aí, claro, entra Portugal. Veja-se o tempo que os assuntos andam pela justiça, com processos a arrastar-se sem que nada se saiba deles, às vezes durante anos, estragando a vida a inocentes e facilitando a de culpados. Veja-se também a nossa legislação, normalmente complexa e dúbia, facilitando duplas e triplas interpretações, grandes aproveitamentos e uma justiça altamente processual. Veja-se ainda o número de contratos que são feitos pelo Estado sem que se saiba o conteúdo estabelecido. O paradigma da opacidade é, evidentemente, o caso Novo Banco (da compra à venda de ativos) e o desmantelamento do universo BES/GES. Outra incógnita tem a ver com as negociações com a troika. Ainda hoje não se conhecem atas do processo e, por isso, não sabemos quem, em concreto, propôs certas decisões, designadamente privatizações desastrosas. Embora tenhamos uma comunicação social débil, a verdade é que ainda é por ela que se vão denunciando casos em que o Estado é lesado, o que incomoda muitos dos titulares políticos, administrativos, reguladores e empresas poderosas.
2. Outra das muitas manifestações da opacidade em que vivemos tem a ver com a ilusão que nos é criada relativamente ao esforço no combate à pandemia. Na semana passada, soube-se pela OCDE que, afinal, Portugal é um dos países europeus onde menos se gastou na luta contra o vírus em termos de percentagem do PIB. É também aquele onde a perda de rendimento é mais acentuada, andando pelo dobro da média europeia. A massificação da mensagem política e as vagas sucessivas de anúncios de verbas que, no fundo, são sempre parcelas do mesmo bolo, criam uma ideia de dinâmica que não existe. Assim como também não há perspetivas de uma recuperação rápida da nossa economia, uma vez que a sua grande alavanca é o turismo, que garantia receita e emprego, mesmo mal pago, evitando despesa social.
3. Precisamente no campo do emprego, o Governo anuncia medidas que não chegam ao terreno, mas esquece deliberadamente outras bem simples que certos países pensam impor. É o caso da obrigação das empresas, depois da crise, de terem de recontratar os mesmos trabalhadores que dispensaram e pelos mesmos valores, desde que eles o queiram. Seria socialmente justo. Seria eticamente correto e evitaria a tentativa de repescar os mesmos, cortando-lhes vencimento. Era saudável o Governo, um dos partidos da esquerda, da social-democracia ou da democracia cristã, ou até o Presidente Marcelo, lembrarem-se de promover uma lei nesse sentido. Se assim não for, ainda aparece o Chega com a ideia… e depois não se queixem.
4. É também de opacidade que se alimentaram certas figuras no universo Montepio. Durante anos, Tomás Correia tomou conta da instituição, gerindo como entendeu os recursos e poupanças de 600 mil mutualistas, sem intervenção de reguladores, das tutelas (o Ministério da Segurança Social, nomeadamente no tempo do inenarrável Vieira da Silva) ou do Ministério Público que, pelos vistos, nem lê os jornais onde muita coisa se denunciou ao longo de anos. Entretanto, há agora quem opine que a culpa da situação é dos associados. É pura má-fé interesseira. Ninguém fez nada. Ninguém fiscalizou. O Estado demitiu-se e depois tenta-se responsabilizar os aforradores. Este argumento perverso ignora deliberadamente que os mutualistas aderiram fundamentalmente porque eram depositantes de um banco cujo nome era sinónimo de solidez, de seriedade e de apoio social, pertencendo a uma instituição com 180 anos. Esta estratégia sinistra só pode ser disseminada e urdida por um grupo de gulosos que gostaria de comprar a pataco ativos importantes e depois revendê-los a bom preço. Já se viu isto e deu milhões no BES, GES, Novo Banco, BPN e BPP. O facto é que certos comentadores apontam para a solução de deixar afundar o Montepio. Por isso, os mutualistas têm de estar conscientes de que têm de ser eles próprios a encontrar soluções, antes que cheguem mais vampiros que não deixam nada.
5. A opacidade é também regra em certos contratos, como o da Web Summit. Lisboa pagou milhões para a receber. Só este ano foram 11 para fazer o evento em versão online. E de repente anuncia-se que vai haver outra Summit igual no Oriente. Afinal, não é exclusivo nosso e também não se conhece o retorno da coisa. Sabe-se, sim, que o contrato é confidencial, inacessível e irrevogável, cabendo aos portugueses pagar a festa.
6. No meio disto e uma vez que já é recandidato, Marcelo Rebelo de Sousa podia adotar como desígnio principal o combate à obscuridade nos negócios e na política de mercearia em tudo o que envolva dinheiros públicos, grandes negócios, parcerias com privados, megaobras, grandes eventos e, naturalmente, a rotação de lugares entre os mesmos de sempre, à direita e à esquerda. Podia não ser muito popular e não ser especialmente mediático, mas seria muito útil do ponto de vista ético, para a nossa projeção internacional e para acabar com a opacidade que é uma das marcas negativas da nossa sociedade e é a base de muita corrupção e da distorção das normas de transparência que devem reger a democracia.
7. Morreu Pedro Camacho, um jornalista conceituado e respeitado que, entre muitos cargos, foi diretor de informação da Lusa, onde se mantinha. Membro de uma família ligada à comunicação social, Pedro Camacho foi mais uma vítima da pandemia de covid-19, que também levou a sua mãe, Helena Marques. O jornalismo português ficou mais pobre.
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