Estado de emergência é quando um homem quiser


Uma renovação do estado de emergência que não está decretada já está a ser regulamentada pelo Governo e, portanto, a ser executada, violando claramente a regra constitucional da duração do estado de emergência.


O art.o 19.o, n.o 5 da Constituição refere que “a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência é adequadamente fundamentada e contém a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso, não podendo o estado declarado ter duração superior a quinze dias, ou à duração fixada por lei quando em consequência de declaração de guerra, sem prejuízo de eventuais renovações, com salvaguarda dos mesmos limites”.
Daqui resulta que a Constituição não permite que seja declarado o estado de emergência por período superior a 15 dias, o que bem se compreende devido à gravidade da suspensão dos direitos constitucionais que do mesmo resultam e que implicam que o procedimento para que o estado de emergência seja declarado se repita a cada duas semanas, sendo nesse momento sempre necessária a audição do Governo e a autorização da Assembleia da República para que o Presidente da República possa decretá-lo.
O decreto do Presidente da República 61-A/2020, de 4 de Dezembro, procedeu à renovação por mais 15 dias do estado de emergência, conforme a Constituição exige, referindo o seu art.o 3.o que “a renovação do estado de emergência tem a duração de 15 dias, iniciando-se às 00h00 do dia 9 de dezembro de 2020 e cessando às 23h59 do dia 23 de dezembro de 2020, sem prejuízo de eventuais renovações, nos termos da lei”. Não há, assim, no texto do decreto presidencial qualquer decretamento do estado de emergência por mais de 15 dias, estando o mesmo em conformidade com o que a Constituição determina.
No entanto, o Presidente da República escreveu no preâmbulo do seu decreto que “é previsível que esta renovação se tenha de estender pelo menos por um período até 7 de janeiro, permitindo desde já ao Governo prever e anunciar as medidas a tomar durante os períodos de Natal e Ano Novo, tanto mais que a vacinação só começará a ter aplicação generalizada ao longo do ano de 2021. Tal implicará novo decreto presidencial, precedido de parecer do Governo e de autorização da Assembleia da República, já dentro de alguns dias”.
É sabido que os preâmbulos dos diplomas não têm valor jurídico, não passando de afirmações feitas pelo legislador destinadas a contextualizar e explicar as normas que aprova. No entanto, e como claramente era intenção do Presidente, tal permitiu ao Governo aprovar o decreto 11/2020, de 6 de Dezembro, que refere expressamente no seu art.o 1.o que “o presente decreto regulamenta a prorrogação do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.o 61-A/2020, de 4 de dezembro, bem como a eventual renovação do mesmo”. E esse diploma anuncia nos seus artigos 44.o e seguintes já uma série de medidas para os dias 24 de Dezembro e seguintes, referindo o art.o 44.o que “caso se verifique a renovação do estado de emergência a partir das 00:00 h do dia 24 de dezembro, é prorrogada a vigência do presente decreto, com as alterações constantes do presente capítulo, salvo se a situação epidemiológica impuser uma revisão intercalar a 18 de dezembro”.
Temos assim que uma renovação do estado de emergência que não está decretada já está a ser regulamentada pelo Governo e, portanto, a ser executada, violando claramente a regra constitucional da duração do estado de emergência. Ora, não é por acaso que a Constituição estabelece esse prazo, exigindo que uma situação, que é de emergência, não seja banalizada, como acontece claramente com esta regulamentação antecipada de um estado de emergência não decretado. É além disso inconcebível que através de um decreto do Governo se pretenda desde já executar um decreto presidencial que ainda não existe, o que constitui claramente uma violação da separação e interdependência dos órgãos de soberania, exigida pelo art.o 111.o da Constituição.
Tudo isto só faz lembrar o poema de Ary dos Santos: “Natal é em Dezembro/ Mas em Maio pode ser/ Natal é em Setembro/ É quando um homem quiser”. Para os nossos governantes, agora, o estado de emergência é também quando um homem quiser. Mas ambos estão errados. O Natal é em Dezembro e o estado de emergência obedece a rigorosos pressupostos constitucionais, sendo essencial o respeito pelo seu prazo de vigência. É por isso que o decreto 11/2020 constitui mais uma inconstitucionalidade, a somar a tantas outras verificadas durante esta pandemia.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

Estado de emergência é quando um homem quiser


Uma renovação do estado de emergência que não está decretada já está a ser regulamentada pelo Governo e, portanto, a ser executada, violando claramente a regra constitucional da duração do estado de emergência.


O art.o 19.o, n.o 5 da Constituição refere que “a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência é adequadamente fundamentada e contém a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso, não podendo o estado declarado ter duração superior a quinze dias, ou à duração fixada por lei quando em consequência de declaração de guerra, sem prejuízo de eventuais renovações, com salvaguarda dos mesmos limites”.
Daqui resulta que a Constituição não permite que seja declarado o estado de emergência por período superior a 15 dias, o que bem se compreende devido à gravidade da suspensão dos direitos constitucionais que do mesmo resultam e que implicam que o procedimento para que o estado de emergência seja declarado se repita a cada duas semanas, sendo nesse momento sempre necessária a audição do Governo e a autorização da Assembleia da República para que o Presidente da República possa decretá-lo.
O decreto do Presidente da República 61-A/2020, de 4 de Dezembro, procedeu à renovação por mais 15 dias do estado de emergência, conforme a Constituição exige, referindo o seu art.o 3.o que “a renovação do estado de emergência tem a duração de 15 dias, iniciando-se às 00h00 do dia 9 de dezembro de 2020 e cessando às 23h59 do dia 23 de dezembro de 2020, sem prejuízo de eventuais renovações, nos termos da lei”. Não há, assim, no texto do decreto presidencial qualquer decretamento do estado de emergência por mais de 15 dias, estando o mesmo em conformidade com o que a Constituição determina.
No entanto, o Presidente da República escreveu no preâmbulo do seu decreto que “é previsível que esta renovação se tenha de estender pelo menos por um período até 7 de janeiro, permitindo desde já ao Governo prever e anunciar as medidas a tomar durante os períodos de Natal e Ano Novo, tanto mais que a vacinação só começará a ter aplicação generalizada ao longo do ano de 2021. Tal implicará novo decreto presidencial, precedido de parecer do Governo e de autorização da Assembleia da República, já dentro de alguns dias”.
É sabido que os preâmbulos dos diplomas não têm valor jurídico, não passando de afirmações feitas pelo legislador destinadas a contextualizar e explicar as normas que aprova. No entanto, e como claramente era intenção do Presidente, tal permitiu ao Governo aprovar o decreto 11/2020, de 6 de Dezembro, que refere expressamente no seu art.o 1.o que “o presente decreto regulamenta a prorrogação do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.o 61-A/2020, de 4 de dezembro, bem como a eventual renovação do mesmo”. E esse diploma anuncia nos seus artigos 44.o e seguintes já uma série de medidas para os dias 24 de Dezembro e seguintes, referindo o art.o 44.o que “caso se verifique a renovação do estado de emergência a partir das 00:00 h do dia 24 de dezembro, é prorrogada a vigência do presente decreto, com as alterações constantes do presente capítulo, salvo se a situação epidemiológica impuser uma revisão intercalar a 18 de dezembro”.
Temos assim que uma renovação do estado de emergência que não está decretada já está a ser regulamentada pelo Governo e, portanto, a ser executada, violando claramente a regra constitucional da duração do estado de emergência. Ora, não é por acaso que a Constituição estabelece esse prazo, exigindo que uma situação, que é de emergência, não seja banalizada, como acontece claramente com esta regulamentação antecipada de um estado de emergência não decretado. É além disso inconcebível que através de um decreto do Governo se pretenda desde já executar um decreto presidencial que ainda não existe, o que constitui claramente uma violação da separação e interdependência dos órgãos de soberania, exigida pelo art.o 111.o da Constituição.
Tudo isto só faz lembrar o poema de Ary dos Santos: “Natal é em Dezembro/ Mas em Maio pode ser/ Natal é em Setembro/ É quando um homem quiser”. Para os nossos governantes, agora, o estado de emergência é também quando um homem quiser. Mas ambos estão errados. O Natal é em Dezembro e o estado de emergência obedece a rigorosos pressupostos constitucionais, sendo essencial o respeito pelo seu prazo de vigência. É por isso que o decreto 11/2020 constitui mais uma inconstitucionalidade, a somar a tantas outras verificadas durante esta pandemia.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990