Nas minhas deambulações pelas livrarias, deparei, recentemente, com um livro cujo título me despertou a atenção.
Chama-se LAWFARE e foi escrito por três juristas brasileiros, dois deles advogados, o outro professor em uma reputada universidade brasileira e em algumas escolas de Direito europeias.
Os três participaram da defesa de Lula da Silva, e foi a partir dessa sua experiência e dos estudos que, por causa dela, tiveram de fazer que depararam e foram confrontados com a teorização daquele conceito, desenvolvido, já antes, por juristas e estrategas militares norte-americanos.
O conceito nasce, terminologicamente, como explicam os autores, da conjunção da palavra Law com a palavra Warfare: significa, portanto, a possibilidade de atingir objetivos bélicos por via do recurso ao Direito e aos sistemas de justiça.
A definição que fazem de tal conceito é a seguinte: «lawfare é o uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar o inimigo».
No fundo, trata-se, segundo os autores, de um uso indevido do Direito – pois, supostamente, este tem como função restabelecer a paz e não operar como instrumento de agressão – que, assim, é utilizado para realizar objetivos exatamente contrários à sua essência.
Claro está que esta leitura crítica, que os autores do livro fazem do conceito de lawfare, deve algo a uma conceção autopoiética do Direito, de que Kelsen – que, aliás, citam em contraponto – de alguma forma partilhou.
De qualquer forma, mesmo que se não comungue de tal conceção do Direito, teremos de reconhecer que esta se foi afirmando, com efeitos positivos, na história recente da humanidade, contribuindo, assim, de algum modo, para a sua pacificação e a realização de alguma justiça.
Parece, pois, chocante a descrita teorização cínica e programática do uso do Direito, não apenas – como comummente acontece – para regular a tensão gerada pelo desenvolvimento material e cultural de uma dada sociedade, ante as aspirações que ele gera nas forças sociais que, para tal desenvolvimento, foram determinantes, mas, justamente, para desequilibrar os pratos dessa mesma balança.
E, no entanto, é disso que a «lawfare» trata: do uso do Direito para desequilibrar e esmagar o adversário.
Por isso, a lawfare é, precisamente, uma arma apenas ao dispor dos mais poderosos.
Daí que o célebre jurista e também magistrado argentino Zaffaroni – citado neste livro – tenha dito que a lawfare «introduz de contrabando a dinâmica da guerra no Estado de Direito».
Os exemplos que o livro dá desse uso estratégico e belicista do Direito – como se lhes refere – são inúmeros.
Muitos mais poderiam ser dados e, a acreditar no El País, alguns poderá haver bem próximos de nós, no tempo e no espaço.
O livro, convenhamos, não é profundo, perde-se em detalhes mais do que explorados – por exemplo, o uso dos media nas estratégias judiciárias mais agressivas – e não apresenta, em rigor, uma estrutura lógica muito aperfeiçoada de delimitação do seu objeto.
Daí, talvez, o subtítulo: LAWFARE – UMA INTRODUÇÃO
O tema careceria, todavia, de mais estudo e aprofundamento teórico, mesmo que se compreenda a necessidade que os seus autores sentiram de, no momento, exteriorizarem, desde logo, as suas reflexões ainda perfunctórias.
Nesta obra, são, ainda assim, abordados assuntos hoje muito relevantes: por exemplo, o da luta contra a corrupção, os dos instrumentos legais nacionais e internacionais com que ela é desenvolvida no plano judicial e – com esta conexa – a questão da jurisdição universal e a dos problemas e abusos que ela permite na guerra de interesses entre regimes políticos.
O simples termo «luta contra a corrupção», como, de resto, o uso de expressões como «luta contra a droga» e «luta contra o terrorismo», empregados, vulgar e acriticamente, pelos operadores judiciais, mostra bem como a intervenção da justiça se move hoje, mesmo que inconscientemente, numa perspetiva cada vez menos pacífica e pacificadora.
Não por acaso – e isso os autores do livro nem referem – juristas alemães teorizaram já, não há muito tempo, o conceito de «direito penal do inimigo», para lidarem com o fenómeno terrorista.
Apesar de todas as suas insuficiências e sobressaltos metodológicos, o livro merece, no entanto, ser lido e meditado.
Ele devia ser mesmo de leitura obrigatória na escola da magistratura e nos cursos de jornalismo.
Só uma leitura crítica e autocrítica das funções – e práticas – que juristas e jornalistas exercem poderá evitar a sua manipulação fácil pelos estrategas da lawfare, impedindo assim, também, a deslegitimação do Direito, dos aparelhos judiciais nacionais e internacionais e, ainda, a da função informativa.
É que, destruída a credibilidade destes, não se tratará mais de lawfare, mas de verdadeira warfare.
E, infelizmente, parece ser para aí que o mundo caminha.