Empedernidos pelos anúncios diários de dezenas mortes pela covid-19, pairamos numa espécie de transe de banalização da morte, procurando fixar no horizonte raios de esperança na superação do atual quadro de emergência de saúde pública. Em muitos casos, é um processo de embrutecimento que já tinha ocorrido com as mortes noutras latitudes, por exemplo, na sequência de atentados terroristas no Médio Oriente, na Ásia ou em África. A longitude e a latitude, a distância, ajudam na eclosão desse processo de embrutecimento massivo, em que umas mortes contam mais do que outras.
Além da proximidade direta, da existência de algum tipo de convergência com a situação em causa, o patamar civilizacional deveria determinar a sustentação de padrões mínimos de sobressalto pela perda de uma vida humana, que, por muito que estejam em voga modernices de alteração dos quadros de referência, estarão sempre num patamar muito superior a outros seres vivos.
O facto de sabermos que a morte faz parte da equação da vida e de os crentes acreditarem que terão direito a prolongamentos noutras instâncias não deveria ser motivo nem para sobressaltos excessivos nem para uma banalização atroz, já consolidada em relação a outras latitudes e em processo de normalização em Portugal.
A morte num acidente rodoviário de uma jovem de 21 anos é um murro no estômago de qualquer pai, da família, dos amigos e uma comoção comunitária, mas transporta consigo a perigosa triagem da diferença etária, que conduz à valorização ou depreciação da ocorrência em função da idade da pessoa em causa. Sob o plano dos princípios e valores de uma civilização minimamente evoluída é uma abordagem inaceitável, porque o que está em causa, em qualquer latitude, embora parte da equação, não deixa de ser importante. E nem sequer deve ser mobilizado para a apreciação a expetativa de tempo de vida, porque isso implica incontornavelmente a depreciação das perspetivas de quem tem mais experiência de vida. Algo que tem estado em cima das mesas das apreciações éticas na utilização de recursos de saúde de resposta à covid-19 nas situações de aperto dos sistemas perante a pressão da procura de cuidados especializados.
O problema é que a banalização perante a morte, ainda que por subterfúgio para não amedrontar o quotidiano e os equilíbrios mentais individuais e comunitários, pode conduzir à sua burocratização, ao desleixo das instituições no tratamento dos casos concretos. Por comodidade podemos arrumar nos sótãos e nos condomínios individuais dos sentimentos e das memórias, as perdas que vamos tendo, mas ao Estado como entidade responsável pela organização da sociedade, não podem ser permitidos arquivamentos sumários, burocracias acéfalas ou depreciações do efetivo valor da perda de uma vida humana. Por razões de humanismo, mas também demográficas, não são aceitáveis distorções que conduzam a um excesso de banalização. No fundo é o que fazemos noutras questões com o risco. Sabemos que ele existe, que se manifesta, mas não agimos em conformidade para nos precavermos para a sua ocorrência.
Vivemos num quadro de riscos, não podemos nem nos deixar limitar nem nos deixar aprisionar pela banalização das realidades como se, no quadro de evolução civilizacional que atingimos, fosse aceitável prescindir da vida, da experiência, da personalidade e do valor de diversidade da vida de alguém.
É certo que na vida real e na dimensão digital existem muitas derivas de esgoto, mas não podemos aceitar que um desaparecimento de um ser humano ou de uma vida sejam banalizadas ao ponto de serem objeto de arquivamentos mentais ou burocráticos sumários.
Com os impactos da pandemia a rondarem cada vez com maior proximidade, somos sobressaltados por mais uma fatalidade possível, mas inesperada. Estamos vivos e com os padrões de aferição intactos, só precisamos de não deixar banalizar o que, sendo uma equação da vida, não pode ser nem burocratizada nem banalizadas. Uma perda é sempre uma perda.
É por isso incompreensível que, num caso concreto, um pilar do funcionamento do Estado de Direito Português, o Ministério Público, possa formatar o seu comportamento à inação perante um desaparecimento de um cidadão há três meses, nada diligenciando ou delegando competência para, já que não faz, alguém faça o que se impõe: investigar até ao limite o desaparecimento de uma vida humana. Tamanho embrutecimento, incompetência e inação deveria ser motivo de expurgo, mas isso era pedir mais a estruturas que se comportam como castas predestinadas numa sociedade de cidadãos, de leis e de democracia.
É bom que nos sobressaltemos, não deveria ser apenas perante as realidades brutais das perdas ou das tragédias gerais. Há muitas pequenas situações a merecerem sobressalto e provavelmente reduzíamos muitos riscos para as questões essenciais, mas isso era pedir demais quando a prioridade, demasiadas vezes, é o supérfluo, o volátil e o mediático.
Sobressaltemo-nos, com saúde e senso!
NOTAS FINAIS
INDECOROSO. A circunstância política comanda o pulsar dos protagonistas e as abordagens. Os zelosos escrutinadores parlamentares do Novo Banco, sem estar em causa os regabofes de várias temporadas no sorver de dinheiros públicos, não encontraram uns segundos para dedicar à indecorosa manutenção do subsídio de 11 milhões de euros para a Web Summit de 2020, com uma organização exclusivamente digital e com a perda do exclusivo nacional do evento.
INCONSEQUENTE. A morte de Sá Carneiro e de Adelino Amaro da Costa é, foi e continuará a ser uma ferida aberta, porque à época não foi tudo feito o que se devia. A Justiça determinou ter sido um acidente. Há outras perspetivas e teses, mas o mais alto magistrado, o Presidente da República não pode sobrepor convicções pessoais, a partir do Palácio de Belém, às decisões da República e ser inconsequente. Marcelo acha que foi um atentado. E o que vai fazer? Fica-se pelo “achismo”? Foi para algum eleitorado ver?
Escreve à segunda-feira