Imagine que está a navegar na internet – mais especificamente, pelos classificados de arrendamento e compra de imóveis de uma plataforma digital como o OLX, o Idealista ou o Airbnb – e depara com um anúncio apelativo. Pretende mudar de casa ou até mesmo encontrar uma que corresponda às suas expetativas mais elevadas e encontra uma a um preço inacreditável, muito abaixo daqueles que costumam ser praticados, por norma, em locais nobres de uma cidade.
Contacta o anunciante – tal poderá acontecer via email – e, por meio da resposta recebida, compreende que se trata de um cidadão estrangeiro, proprietário de uma casa com comodidades como internet ou aquecimento incluídas numa renda reduzida. A pessoa em questão comprou o imóvel quando a filha ou o filho estudava em Portugal, mas ela(e) vai regressar ao país de origem, onde os pais desempenham funções apreciadas na sociedade, como a profissão de médico. No final é-lhe explicitado, com um post-scriptum, que “será ótimo se falar inglês para uma melhor comunicação”.
Este é o modus operandi de uma alegada rede de burlões que pelo menos desde 2016, engana portugueses e estrangeiros com anúncios fictícios publicados online.
O golpe Não ficou traumatizada com a experiência que teve, mas diz com o doce sotaque da ilha de Santiago que “gato escaldado de água fria tem medo”. Aos 36 anos, Paula (nome fictício) não esquece o mês de julho de 2019. A cabo-verdiana estava em território nacional há somente nove meses e cansada de viver em casa de uma conterrânea. Deste modo, quando o alegado médico escreveu “eu comprei o apartamento para a nossa filha quando ela começou os estudos em Portugal. Agora, ela terminou e voltou para a Suíça, onde estamos trabalhando como médicos. Se você estiver interessada em arrendar o apartamento, explicarei como procederemos”, a aspirante a cozinheira – repete que é esse o seu sonho, lembrando os dias longínquos em que preparava churros e donuts na casa térrea da cidade da Praia antes de ir trabalhar para um restaurante local – não hesitou e predispôs-se a realizar uma transferência no valor de 800 euros (caução e primeira renda), via MB Way, para um contacto telefónico cujo indicativo era o +41 (da Suíça), para assegurar um apartamento T3 na rua Mestre Roque Gameiro, na Amadora.
Numa tarde de sábado, após ter saído do restaurante em que fazia limpezas, no concelho de Cascais, pôs-se a caminho da casa de que pensava ser arrendatária. Afinal, só faltava assinar o contrato e no Idealista – site cujo lema é “Procuras casa? Com o idealista é mais fácil. Mais de 1 700 000 anúncios de apartamentos e casas para venda ou arrendamento” – havia encontrado o T3 “para 400 eur./ mês com tudo incluído: estacionamento, internet, aquecimento, água etc.”. Estas foram palavras daquele que se autodenominava “Dr. Hans Buhler, cidadão suíço” nas comunicações tecidas via correio eletrónico.
Quando se aproximou do local encontrou uma mulher que a encaminhou até ao prédio. Questionando-a acerca do apartamento, percebeu que era vizinha de um casal de meia-idade que era proprietário da casa que alegadamente alugara – que estava a ser intervencionada – e de outra onde vivia.
Receosa devido às informações, Paula não se dirigiu ao andar que devia visitar, mas sim àquele onde encontrou a proprietária, que jurou nunca ter fotografado o apartamento e muito menos ter divulgado fotografias deste no Idealista. “Ela pegou no telefone e ligou ao marido. Ficou apavorada, disse que só os senhores das obras tinham acesso à casa”, explicou, acrescentando que o casal queria ir à polícia. “Não quis fazer isso porque nem sequer estava legal no país, mas fiquei sem o dinheiro e, durante meses, tive de continuar a viver com a minha amiga e a família dela até ter dinheiro para alugar uma casa”, concluiu. Entre os dias 1 e 16 de julho, a mulher enviou vários emails ao burlão; porém, recebia sempre uma resposta automática da Google: “A sua mensagem não foi entregue a dr.hansbuhler100@gmail.com porque não foi possível encontrar o endereço ou receber correio”.
Esta realidade não surpreende a equipa do Idealista que, respondendo a questões enviadas pelo i via email, começou por esclarecer que “as tentativas de fraude não são uma novidade da internet; nos classificados em papel, este tipo de práticas ilegais já aconteciam”, e os vigaristas acabam por encontrar, de modo contínuo, “novas estratégias para atrair possíveis vítimas”, pois ”num mercado no qual a internet passou a ser a ferramenta de pesquisa e de promoção, e no qual, em alguns mercados, a procura de arrendamento e venda é superior à oferta, muitas vezes, os utilizadores deixam de lado algo tão essencial como a prudência, passando a ser mais suscetíveis a este tipo de esquemas”.
Os colaboradores da plataforma, em que os utilizadores têm a oportunidade de desenhar a zona de pesquisa num mapa – para encontrarem imóveis em perímetros específicos – e de publicar os dois primeiros anúncios grátis, elucidaram que apostam na segurança dos utilizadores ”desenvolvendo ferramentas e procedimentos que minimizam o possível impacto de uma hipotética atividade delinquente”, adiantando que “temos que ter em atenção que quem está por detrás destas tentativas de fraude não são grupos de jovens com um computador, mas sim autênticas máfias internacionais que dispõem de tecnologia cada vez mais avançada”. Evidenciando que “todas as denúncias são tidas em consideração e verificadas”, apelam às vítimas desta e de outras burlas que contactem a equipa de qualidade do site ou comecem por revelar as fraudes “através do formulário que se encontra em cada um dos anúncios publicados”.
E que conselhos podem ser dados aos utilizadores? Na perspetiva do Idealista, ”o melhor conselho é que as pessoas utilizem o senso comum, não partilhem nem utilizem a mesma palavra-passe em diferentes serviços, não adiantem nenhum pagamento e desconfiem de tudo o que parece demasiado bom para ser verdade”. E lembra que “quando a esmola é muita, o pobre desconfia”, asseverando que “uma casa maravilhosa, com um preço incrível, que parece ser uma oportunidade única é, muito provavelmente, uma fraude”.
A esperança “Estou em Portugal há 22 anos, desde criança”, explicou Mariana (nome fictício), de 29 anos, que, tal como Paula, veio de Cabo Verde em busca de uma vida melhor. Em março do ano passado estava à procura de uma casa no OLX e encontrou um anúncio apelativo de um T1 na Rua Tomás Ribeiro, em São Sebastião da Pedreira. “Mandei uma mensagem a perguntar se podia visitar a casa e o burlão pediu-me dados como o nome completo e a morada”, admitiu a jovem, que enviou a digitalização da parte da frente do cartão do cidadão, o nome completo, a morada, o número de telemóvel e a data em que pretendia mudar de casa.
É de referir que, no primeiro contacto, Wolfgang Gottfried Ludwig, que dizia ser médico, tal como Hans Buhler, escreveu: “Meu nome é Dr. Wolfgang, cidadão alemão, e sou o dono do apartamento. Comprei-o para a minha filha quando ela começou a estudar em Portugal, mas acabou os estudos. O arrendamento é de 390 euros/mês com todas as contas incluídas. Um agente entrará em contacto com você para agendar a visita”. Seguindo a mesma linha de pensamento de Hans Buhler, rematou com o pedido de comunicação em língua inglesa. “Achei ótimo mas, ao mesmo tempo, estranho”, disse Mariana, que recebeu mais orientações de Wolfgang via WhatsApp, através de um número com o indicativo +49, da Alemanha. “Enviou-me um link do Airbnb para fazer a reserva. Mas para isso tinha de transferir 1170 euros sem ver a casa antes. Portanto, disse que não poderia fazer a transferência”, continuou a rapariga, explicitando que o homem utilizou como pretexto o facto de se ter deslocado a Portugal anteriormente e de não ter mostrado a casa porque o alegado interessado não aparecera. Aliás, quando pediu a Mariana que fizesse a reserva no Airbnb deixou claro que “o pagamento é apenas uma formalidade e não obrigará ao arrendamento do apartamento, é apenas para ter a certeza de que isto não é uma piada”. De seguida, Wolfgang, já descontente com a desconfiança de Mariana, pareceu dar o braço a torcer e sugeriu pagar o seguro da caução, enquanto a aspirante a arrendatária pagaria os dois meses de renda. “Deixou de me responder a partir daqui, viu que eu não caí na armadilha porque insistia em fazer uma visita ao apartamento”, confessou a atual desempregada, que se apressou a visitar o fórum da comunidade Airbnb, onde encontrou relatos semelhantes ao dela. “Percebi que havia mais pessoas nessa situação, fiz o meu relato também e ele mandou-me um email a dizer que o advogado dele ia contactar-me porque não admitia que degradasse a imagem dele online”, recordou, desta vez em tom jocoso, devido ao distanciamento temporal e à inocência que demonstrara na altura, finalizando que não voltou a responder às tentativas de contacto de Wolfgang e “nunca mais” ouviu falar dele.
Enquadramento legal “Infelizmente, estas burlas são comuns e têm sido cada vez frequentes, pelo uso recorrente das plataformas online para a divulgação de negócios imobiliários, e, em especial, desde o surgimento da pandemia, em que as ‘visitas virtuais’ se tornaram uma realidade comum”, afirmou Francisco Patrício, sócio da Abreu Advogados, que trabalha em direito imobiliário, corporate, insolvência, reestruturações e contencioso. O profissional acrescentou que estes crimes ocorrem em diversas plataformas, desde aquelas que são tipicamente associadas às transações, como o OLX, até às de alojamento local ou ao Market Place, do Facebook. Sobre esta burla em específico, declarou que “há variadíssimos modos que se encontram de justificar que uma casa ficou livre” e recorrer à conclusão dos estudos de uma filha fictícia como desculpa “é um deles”. Patrício avançou igualmente que a Abreu Advogados acompanha “casos com contornos semelhantes e em maior escala. Este tipo de caso apresentado não é novo, mas ganhou novos contornos com o crescimento das plataformas online e, mais recentemente, com o período de pandemia”. Neste sentido, Pedro Barosa, sócio contratado da mesma firma, que se foca em contencioso penal e contraordenacional, quis realçar que estudantes e turistas estrangeiros são alvo destas práticas frequentemente, pois “antes de se mudarem, naturalmente, pretendem ter já assegurado o quarto ou a casa onde vão ficar”. Para Barosa, “não pagar nada enquanto não se recolher toda a informação possível e, claro, desconfiar das pechinchas” constituem as peças-chave para que os cidadãos desmontem o puzzle das burlas imobiliárias online e se protejam das mesmas.
A fragilidade Já em plena pandemia, em julho deste ano, Carolina (nome fictício), de 55 anos, procurou casa no rescaldo de um divórcio – após um relacionamento amoroso de 30 anos – e da estada numa casa abrigo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Na verdade, passou alguns meses em casa de uma amiga; porém, decidiu que tentaria encontrar o seu “cantinho” para iniciar um novo capítulo da sua vida. A funcionária pública encontrou um anúncio no Airbnb em que um apartamento situado na Rua Dr. Mário de Vasconcelos e Sá, no Porto, era disponibilizado por uma renda mensal de 350 euros.
“Quase ia sendo burlada, mas achei a proposta demasiado boa”, revelou a mulher, em chamada telefónica a partir da casa que alugou, a medo, tempos depois desta tentativa de burla. “Oi. Recebi seu contacto para o meu apartamento. Meu nome é Maddalena, sou a dona do apartamento. O apartamento está disponível para aluguer em boas condições, totalmente mobilado e bem equipado, como nas fotos”, escreveu Maddalena Mancini, sublinhando que o valor anunciado seria aquele “por tempo limitado”. Para obter a confiança de Carolina, Maddalena escreveu:“Você é uma pessoa muito legal e posso garantir que não teremos problemas. Vou tentar explicar o processo passo a passo como isso funcionará”, e elencou as tarefas que a mulher teria de realizar: primeiro, reservar o apartamento via Airbnb por um mês – “o Airbnb enviará por email a fatura com todos os detalhes sobre a sua reserva” – e, quando recebesse o documento, teria 24 horas para concluir o pagamento e confirmar a reserva, assim que a plataforma recebesse o montante em questão. O Airbnb entraria em contacto com a arrendatária para ”fixar a data da inspeção” e um agente enviado pelo site telefonaria à vítima “dois/três dias após a confirmação do pagamento”, para que o contrato fosse assinado.
Carolina teria duas opções: assinar o contrato – o dinheiro seria transferido a Maddalena pelo Airbnb – ou informar o agente de que não desejaria alugar a casa, sendo o dinheiro reembolsado em 48 horas. “Acho que você não usará essa opção”, disse Maddalena, com a mestria típica da manipulação online, não esquecendo o golpe final:“Se você pagar seis meses de aluguer, eu lhe darei um desconto de 15% no valor total”. Aliciada pela burlona, Carolina admitiu que dispunha do montante pretendido e que desejaria alugar o apartamento por um ano. Como moeda de troca, depois da receção de informações pessoais como o número de telemóvel e a informação de que uma das filhas de Carolina passaria alguns dias com ela no apartamento, Maddalena tirou a carta esperada da manga: “Eu comprei este apartamento para minha filha durante os estudos dela, mas agora ela está de volta em casa na Dinamarca permanentemente. Quero antecipadamente o pagamento de um mês de aluguer mais a caução de € 700 (solicito esse título porque tudo no apartamento é novo e quero-o bem guardado… espero que você entenda), no total de 1050 €”, completando a façanha com “antes alugava meu apartamento no Airbnb por curtos períodos, mas agora não tenho tempo para cuidar dele, e é por isso que quero alugá-lo por um longo período”.
Carolina comparou as fotografias enviadas pela burlona com aquelas que existiam nos anúncios do Airbnb, constatando que aquela casa nunca havia sido anunciada na plataforma. “Penso que ainda não deve ter eliminado a conta, não lhe voltei a responder!”, contou.
A importância do investimento “Quando começam a sair notícias a respeito destas burlas, os alegados proprietários tendem a mudar a estratégia e o modo de atuação”, expôs José Carlos Santos, CEO da Habita Mais – segundo a descrição disponível no site oficial, a empresa “assenta na larga experiência profissional dos seus fundadores e colaboradores, ligados à construção civil e obras públicas há mais de 20 anos” –, para quem “os meios de comunicação têm aqui um papel preponderante, já que quanto mais rápida for a difusão da notícia sobre a burla, mais rápida é a retirada dos seus autores do âmbito de atuação, ainda que possam regressar mais tarde com novas estratégias”. Com experiência em funções relacionadas com gestão executiva e alta direção no ramo imobiliário, bem como licenciatura em Gestão Imobiliária e mestrado em Gestão, disse que os clientes da firma que dirige “estão bem informados”, pois a sua equipa faz questão de referir esses temas quando enumera as vantagens de trabalhar com pessoal especializado. “Claro que trabalhar com profissionais qualificados tem os seus custos, mas a médio/longo prazo compensam e recompensam o investimento!”, referiu o empresário, mostrando que apostar na colaboração com uma entidade no imobiliário é uma atitude certa “não só pela ausência de risco, mas também pela inexistência de uma sobrecarga com preocupações que podem e devem ficar do nosso lado, de modo que os clientes se possam focar nas responsabilidades profissionais, pessoais, familiares e sociais”. Santos transmitiu que tomou conhecimento desta burla específica “em meados de 2016”.
Os primórdios Foi precisamente há quatro anos que Mónica Barbosa, hoje com 32 anos, encontrou “um apartamento na cidade de Guimarães, numa zona boa, com muito bom aspeto e a um preço mais acessível que a média”. Na altura, Mary Ann Rogers propôs a renda de 280 euros mensais, um mês de caução “e uma resposta em Inglês, se possível” para que a jovem tivesse a oportunidade de viver na Rua Arqueólogo Mário Cardoso. Mencionando que “o apartamento estava totalmente renovado” e Mónica “poderia respirar ar puro”, enviou fotografias adicionais da casa e a planta da mesma e sugeriu a entrega das chaves do apartamento através de um agente do Airbnb. “Estive a analisar bem a posição das janelas, o que me fez parecer que o apartamento teria três frentes”, explicou Mónica. “E comecei a investigar a estrutura dos prédios dessa rua, o que, combinado com o facto de ter a coluna no meio da sala, me fez pensar que as fotos seriam de uma casa e não de um apartamento”, recordou aquela que não chegou a ser uma vítima porque realizou uma pesquisa reversa das fotografias e descobriu que as mesmas tinham sido divulgadas por uma imobiliária sediada na Roménia, que anunciava uma casa geminada. “Fiz de conta que estava tudo bem, mas inventei que os meus pais alugavam um apartamento no Airbnb para dar a entender que percebia bem como funcionava o sistema de aluguer do site”, disse, lembrando que pediu para ver o contrato. “Pura e simplesmente, ela deixou de me responder”, recordou.
A posição da PGR ”Estes crimes vitimizam categorias transversais de pessoas, não havendo ainda nenhum alvo-tipo estabelecido”, aclarou Pedro Verdelho, coordenador do Gabinete de Coordenação da Atividade do Ministério Público na área da Cibercriminalidade, que tem sede na Procuradoria-Geral da República. O responsável argumentou que estes ilícitos “se perpetram por via de anúncios na internet que são vistos por um grupo muito grande e diferenciado de pessoas que apenas têm em comum estarem à procura de uma casa para arrendar”. E o dirigente do gabinete que mantém uma rede de pontos de contacto em todo o território nacional (pelo menos, um magistrado por cada uma das comarcas) prosseguiu: “Há vítimas entre imigrantes acabados de chegar ao país, entre estudantes universitários que mudaram de cidade para ingressar na universidade, entre jovens adultos que se autonomizaram da sua família, entre muitos outros”, defendendo que “neste tipo de burlas, que ocorre também noutros países, a nacionalidade do agente do crime é pouco relevante”. Ainda assim, admitiu que existe “quase sempre um elemento estrangeiro no estratagema fraudulento: o dono da ‘casa’ usada como engodo diz não ser português, ou então não estar em Portugal”, elucidando que “esta circunstância tem em vista justificar o motivo pelo qual o burlão arrenda a casa e a razão pela qual não pode comparecer presencialmente nem mostrá-la”, tal como se verificou nos casos das vítimas anteriormente referidas. Apesar de reconhecer que ”cada caso é um caso” e que podem estar em causa diversos tipos de ilícito, na medida em que “tudo depende da concreta factualidade de cada caso”, Verdelho explicou que “como os agentes do crime fazem deste esquema modo de vida, vão muitas vezes repetindo os procedimentos e os métodos de abordagem às vítimas”.