Ainda sou do tempo em que na escola primária se estudavam os rios e as linhas de caminhos-de-ferro, entre outras redes vitais da nossa geografia física e humana. Recordo-me que, nessa altura, os rios nos eram apresentados como se tivessem uma personalidade. O Mondego era “bazófias”, o Guadiana melancólico, o Tejo distendido e o Douro apressado e incerto, rompendo por entre escarpas, aconchegado pelas serras e impetuoso quando a chuva lhe corria de feição. Continuando a remar metaforicamente por estes rios abaixo, sabemos que quanto mais aconchegado é um rio, mais propenso é a saltar do leito, inundar as margens e gerar pântanos mais ou menos persistentes.
O pântano para que foi atirado pela batida em retirada dos parceiros num momento de aperto gerado pela adaptação à moeda única levou António Guterres a abrir caminho para a tomada democrática e efémera do poder por Durão Barroso. O mesmo sucedeu com Passos Coelho quando a crise financeira internacional dificultou a governação de Sócrates. É na mesma linha e no mesmo padrão estratégico e tático que se insere o súbito aconchegamento de Rui Rio no momento mais intenso e difícil da crise pandémica.
Respeito a escolha, como não poderia deixar de ser. Caberá aos eleitores, como já escrevi noutra crónica neste espaço, fazerem no seu devido tempo o julgamento e escolher que caminho querem para Portugal. O povo é o soberano democrático.
Dito isto, importa salientar que num quadro de fragmentação política que tem vindo a assolar muitas das democracias europeias e se tende a agravar em Portugal, é cada vez mais importante assegurar blocos de governação viável e evitar que a radicalização e as fraturas expostas envenenem a normal dinâmica das recomposições ou das alternâncias.
Se ao aconchegamento de Rio se viesse a juntar uma tentação reflexa da esquerda moderada para se diluir nas opções mais extremas, abrir-se-ia um vazio e uma cratera central que poderia ser letal para a paz social e a estabilidade democrática que têm sido a marca de água da nossa democracia.
Defendo por isso que a resposta à manobra do líder do PSD para dar guarida à sede de poder incondicional de uma parte das suas hostes é desenvolver uma coligação programática alargada que garanta uma modernização e renovação política no espaço dos princípios constitucionais que nos regem e dê resposta aos grandes desafios com que nos confrontamos, puxando pelos ideais que unem e em articulação com os quais se devem e podem dirimir com elevação as causas que dividem.
O combate às desigualdades, que a pandemia veio tornar ainda mais urgente, a neutralidade carbónica, a qualificação generalizada na administração pública e fora dela, a transição digital inclusiva, a convergência entre territórios e as políticas ativas de repovoamento, tal como a modernização industrial, a transparência e o combate à injustiça fiscal e à corrupção, são prioridades capazes de dar forma não a um “centrão dos interesses”, de que devemos afastar-nos, mas a uma maioria reformista e progressista fundamental para ficarmos do lado certo da barricada, no desaconchego que vai marcar o mundo na reentrada para a nova década.
Eurodeputado