Uma conhecida figura de Hollywood revelou anteontem que é transgénero, escolhendo passar a chamar-se Elliot Page. Segundo o nome e pronomes que assumiu (he/they), e pela referência ao seu orgulho trans e queer, Elliot parece anunciar que é um homem transgénero tendencialmente não-binário. Previsivelmente, todos os arquétipos de que os argumentistas preguiçosos de 2020 teriam pachorra para pôr em cena cumpriram o seu papel na perfeição: os perigosos liberais e os adeptos da decência mínima a que se chama, hoje, de “politicamente correto” aplaudiram o anúncio, a coragem, a importância do coming out de alguém tão famoso; as TERF (feministas radicais trans-excludentes) de serviço acusaram a antiga lésbica assumida de “desertora” da luta contra o patriarcado e a heteronormatividade em prol do privilégio masculino, como se a identidade de género fosse coisa de caprichos – e, aliás, com se o “privilégio transgénero” existisse e fosse apetecível, como tão bem se vê pelas estatísticas sobre o bullying e a violência sobre as pessoas transgénero, as suas taxas de desemprego, pobreza e suicídio, etc. (e isto não significa que uma mulher transgénero não sofra, infelizmente, ainda mais camadas de preconceito do que um homem transgénero). A este respeito, há pontos relevantes (ainda que, por vezes, baseados em equívocos) a serem discutidos com o chamado “feminismo radical trans-excludente”, embora tal discussão pareça, atualmente, impossível, dado o clima de crispação potenciado pelas pífias guerras twitteiras.
No entanto, convém lembrar também as outras reações negativas mais imediatas e acéfalas: as dos grunhos “das leis da natureza” e do “é impossível mudar a biologia”, as dos burgessos “da ideologia do género” e do “é preciso proteger as crianças”. Imaginem usar as “leis da natureza” como argumento, no século XXI, quando temos frigoríficos, smartphones, e O Preço Certo em Euros. Imaginem usar a biologia como argumento e dizer, ao mesmo tempo, que as meninas têm de vestir de rosa e os meninos de azul, como se houvesse nisso algo de natural. Imaginem achar que a “ideologia de género” não é o que essas pessoas fazem quotidianamente: criar, normalizar, impor e reificar um conjunto de normas e prescrições arbitrárias, que radicam em relações (que deveriam estar) ultrapassadas de poder e controlo social, em vez de protegerem realmente a identidade e a liberdade de as crianças se expressarem como desejam.
Dá-se o feliz acaso de a revelação de Elliot Page ter acontecido já no Advento, que invoca os preparativos para o festejo do nascimento de Cristo e nos recorda algo que já é um meme na Internet (que se vão impondo como uma das bases da cultura popular): sim, Jesus Cristo era um homem transgénero, e passo a explicar porquê. Já que há tantos especialistas de biologia nas caixas de comentários dos jornais e das redes sociais, – e para não ser preciso falar, sequer, nas pessoas intersexo – sugiro que pesquisem o conceito biológico de “partenogénese”, por exemplo na Wikipédia (por vezes dúbia nos pormenores, mas, normalmente, boa a apresentar um consenso nas definições gerais). Segundo a versão portuguesa, o termo “refere-se ao crescimento e desenvolvimento de um embrião sem fertilização. São fêmeas que procriam sem precisar de machos que as fecundem”. Pois bem, se isto não corresponde, exatamente, à descrição biológica do que aconteceu com a conceção de Jesus, alguém anda a precisar de reler os evangelhos (especialmente Mateus).
Ora, no caso de uma partenogénese humana, só um indivíduo de sexo genético masculino poderia gerar pessoas com os cromossomas sexuais XY e XX, a quem habitualmente se chama menino e menina, respetivamente. Como os indivíduos de sexo genético feminino só possuem o par XX, nunca poderiam gerar uma criança com o par XY, ou seja, “um menino”, sem o material genético de um homem de carne e osso – no caso, o pobre José. Assim, Jesus Cristo só pode ser geneticamente feminino e, como se apresentava como um homem, seria, naturalmente, um homem transgénero.
Isto é uma questão de coerência interna da narrativa. Como Elliot Page certamente saberá, quanto mais mirabolante é um universo ficcional, mais coesão interna este tem de garantir. Por exemplo, no filme Inception, de Christopher Nolan, onde Elliot Page é um dos protagonistas (ainda sob outro nome e representando o papel de Ariadne, uma personagem feminina), Cobb, a personagem de Leonardo DiCaprio, passa uns bons e arrebatadores minutos a explicar a Ariadne as regras do universo onde se encontram, e o espectador percebe que tem de as aceitar, como parte do processo de “suspensão da descrença” perante um mundo de ficção. Na verdade, os filmes de Christopher Nolan nem sequer são inteiramente fantasiosos, uma vez que costumam limitar-se a levar ao limite (passe a aparente redundância) as possibilidades teóricas das leis da física ou, neste caso, da consciência. Por isso, das duas, uma: ou a história de Jesus Cristo é real e, segundo as leis da natureza, Jesus é trans, ou é uma narrativa ficcional que invoca a suspensão da descrença perante uma realidade alternativa onde os cromossomas masculinos aparecem, literalmente, por obra e graça do Espírito Santo. A fé pode ser vista como uma forma (extrema?) de suspensão da descrença, podendo esta ideia ser, até, expressa como uma tautologia: a crença é a negação da descrença.
Assim sendo, amigos na mesma. Cada um com as suas crenças. A questão é: o que interessa a um cristão que eu acredite que Jesus Cristo era transgénero? Nada, assim como não me interessam as crenças dos outros, desde que não me venham insultar a mim, ou a terceiros, à conta disso. Na verdade, o género é sempre uma ficção, qualquer que seja o tipo de fé que tenhamos perante ele – é uma construção eminentemente humana, cultural, social, e discutir-se posições quanto ao género dos outros é como discutir a fé das pessoas. Haja decoro.
E é isto que nos traz ao breve manifesto prometido no título, algo que gostaria de deixar à consideração de todos, quer sejam crentes ou descrentes no género – algo que nos pode unir para muito além deste tema, incluindo, por exemplo, perante as imposições biopolíticas destes tempos obscuros, perante o desespero do neoliberalismo a lidar com a sociedade do pós-trabalho, e perante as derivas populistas de quem quer pôr o coxo contra o manco: as pessoas deviam ser ajudadas quando precisam e, de resto, deviam ser deixadas em paz. É este o meu brevíssimo manifesto, o meu minifesto. A sério, pensemos nisso. De certeza que todos sabemos o que é precisar de ajuda em relação a algo que achamos não ser culpa nossa, algo que não sentimos como uma falha moral da nossa parte. Um desamparo em que veríamos com indignação se alguém nos viesse culpar por aquilo que nos levou a precisar de ajuda (se nunca sentiram isso, ótimo, são incrivelmente privilegiados): um acidente, uma vicissitude, um infortúnio, uma condição, um contexto, uma escolha, uma crença – o que é que alguém tem a ver com isso? Há algo de profundamente humano na ajuda descomprometida, abnegada, desinteressada. Simplesmente ajudar o próximo, mesmo que se ache que esse próximo peca, ou pecou, de alguma forma. Aliás, sempre me disseram que isso é que era ser um bom cristão, e essa ideia nunca deixa de me parecer bonita e valiosa – mesmo não acreditando nem em Deus, nem no seu filho transgénero, nem no deus do género.
Por fim, convém referir que este protomanifesto é utópico não apenas pelo seu caráter ideal e idealista, mas também pela própria origem da palavra utopia – do grego ou-, “não” ou prefixo de negação, e tópos-, “lugar” – ou-tópos, um não-lugar. Porque este não é, de todo, o meu lugar de fala, e, por isso, é com todo o gosto que deixo o convite para lerem quem de direito, qualquer boa autora ou autor transgénero falando na primeira pessoa, ou, simplesmente, o texto de (re)nascimento de Elliot Page. Parece que, com esse texto, Elliot começará a viver, por fim, de acordo com a verdade daquilo que sente, abandonando as ficções que os outros lhe impunham. Um bem-sucedido ator de Hollywood, como Elliot, não precisará, certamente, de grande ajuda – e, por ter decidido vir a público, também estará preparado para que não o deixem em paz tão cedo. Mas, para as pessoas transgénero comuns, bem menos privilegiadas, seria importante suspendermos, de vez, as nossas crenças mais rebuscadas, os mundos que inventámos para nós próprios e que, na verdade, já não deviam servir para ninguém. É preciso ajudar as pessoas quando precisam – incluindo encorajá-las ou aplaudi-las quando merecem – e, de resto, deixá-las em paz.