Eduardo Lourenço. O homem que ligou as luzes num país desavindo

Eduardo Lourenço. O homem que ligou as luzes num país desavindo


Desde cedo o norteou o desejo de apagar a distinção “entre criação literária e crítica, entre filosofia e poesia”. Elevando a exigência sobre o ensaio, Eduardo Lourenço prodigalizou o seu génio e erudição à obra dos outros, escrevendo páginas que dão sentido à História e à cultura de um país.


Chegou aquela hora, sempre um tanto ridícula, em que a morte impõe o seu equívoco e parece que somos forçados a despedirmo-nos e homenagear à pressa um vulto que marca uma diferença radical na atitude intelectual deste país. Um perfil tão singular como o de Eduardo Lourenço, que fez do ensaio como cadeia orgânica de elos uma espécie de cântico integrador, aquele que sucede à tradição da epopeia, elaborando no estômago da própria dúvida um romance que tenta dar sentido não apenas à cultura e à História de um país, mas que, ao pensar toda uma época, se autoriza “essa implícita constituição de uma mitologia que no-la resume”. Assim, ele foi não só a figura instituinte desse regime mitopoético e psicologizante, numa escrita que segue de perto “um pensamento cintilante”, como notou Onésimo Teotónio Almeida, “uma escrita que resulta não em avalanche, ou catadupa, mas em discurso que flui abundante e simultaneamente sereno, sem convulsões”. Por sua vez Igmai Larsen, notava que “o tipo de mitologias que Lourenço apresenta actua por via da sua agilidade e criatividade semânticas”. E porque o mito é uma espécie de ficção exacerbada, a qual se exerce não apenas através da imaginação e sensibilidade de um só espírito, mas depende de uma perspectiva dinâmica, a qual lida com emoções e impulsos que dizem respeita não a um indivíduo, mas a uma comunidade. Por isso é tão difícil propor um balanço, uma descrição mesmo insegura de uma obra tão vasta, de um contributo que, se nos incentivou a uma coisa foi a ter uma visão do tempo cultural aberta, “como se toda a criação, em todas as épocas, fosse uma espécie de rosa dos tempos onde confluem, se amalgamam e jogam às escondidas umas com as outras sensibilidades de épocas tidas como inconciliáveis”.

E foi assim, elevando a exigência sobre o ensaio, que Lourenço recusou dedicar-se a uma obra imortal, prodigalizando o seu génio e erudição nessa forma de generosidade sem a frieza de um cálculo ou estratégia de afirmação, e, por isso, como defende Teutónio Almeida, nunca fez outra coisa senão passar a vida a escrever páginas sem fim do mesmo livro. “É como se a obra de Lourenço fosse um diário intelectual”, adianta. Mas vamos mais longe, e vemos nela algo como um romance que em vez de estabelecer uma arquitectura interna, uma espécie de catedral que gera no seu interior um perfeito jogo de ressonâncias, uma exemplar acústica, se abre, se alarga em jardins a perder de vista, num labirinto que em vez de ter como projecto perder nele quem lá entra, antes organiza a nossa propensão para a errância. Há, assim, nesta obra não um destino mas uma infatigável capacidade de deslumbramento e inocência, a de quem reúne impulsos desde as diversas áreas do pensamento e os anima com essa inveja da música que há na grande poesia. E a poesia ele não a entende senão como esse golpe de rins, esse renascimento que se assiste após cada tombo e humilhação, como um testemunho daquele que se encoraja, “resistindo à tentação de se deixar silenciar pelo que o nega e se sobrepõe à sua voz”.

Os ensaios de Eduardo Lourenço são como episódios num enredo profícuo porque se alimenta de tudo aquilo com que se vai deparando. Em Fernando Pessoa encontrou o próprio regime de uma dedicação desvairada a uma hora absurda, a um leitor quase impossível. Na descoberta desse continente imprevisto, oculto entre nós, e por isso mesmo capaz de provocar tamanho espanto e dilaceração, por ser uma revelação póstuma, um cadáver que mesmo na sua decomposição continha mais futuro do que as tantas fantasias das horas que se puseram a velá-lo, transpirando ao tentar definir-lhe contornos que não se aquietavam. O presente humilhava-se, tentava por todos os meios recuperar do seu atraso perante aquele resto de uma imortalidade insuspeitada, como um teatro de uma civilização impossível de datar, e que se foi revelando aos poucos, sustendo ao longo de décadas uma ideia de que a literatura não podia mais ser entendida como uma mera finalidade. Reconheceu ali o regime que mais lhe importava, o dessa “fidelidade sonâmbula”, e aplicou-se no ensaio como interrogação que circularmente se interroga, sem conhecer os limites, nem da sua voz, nem da sua força, defendendo a literatura e a nossa própria existência como absoluta ficção. Assim, formulou essa hipótese de um jogo, “o mais eficaz dos jogos que soubemos inventar para vencer dentro da vida aquilo que no seu coração a esboroa; o tempo”. Foi por isso, perante um cadáver, nos processos com que a morte expõe as evidências do que nem mesmo a vida pôde conter, que Lourenço encontrou as pistas para o seu próprio desfasamento, para estabelecer os atalhos mais improváveis, sem se preocupar muito em deixar um rastro intacto e que pudesse ser seguido e espiolhado, objecto de exame e programa na academia, não deixando mais que o seu ânimo fosse contido, a solução foi passar-se “sem armas e sem bagagem para a literatura”. Não apenas num sinal de afeição pelo caos, mas “como quem foge”, como quem expia já o futuro crime, e fabrica, ao mesmo tempo, o seu “álibi”, o qual não significa abandonar a cena e não olhar mais para trás, mas precisamente persistir entre os curiosos, numa espécie de infâmia, fazendo durar para si mesmo esse “argumento”, e o seu próprio fascínio. Por isso não lhe bastava o projecto do crítico, nem se queria entre os explicadores, olhava com suspeita os professores, “gente imensamente sensata que não tem descanso enquanto não encontra um nome para se livrar de tudo quanto é grave e inquietante e para quem é grave e inquietante tudo quanto não tem um nome”. Preferia deter-se diante de enigmas insolúveis, de obras que lhe surgissem como “o mistério abrupto dum monstro sem sentido e sem autor”. “A intenção visível que desde cedo me norteou”, disse certa vez, “foi a de apagar uma distinção ao mesmo tempo escolar e escolástica entre criação literária e crítica, entre filosofia e poesia.” E através de um sublinhado na obra de Maria Velho da Costa, vincava: “somos nós os formuladores do informe e mal contido cântico que está pulsando no corpo-fala do país”.

Os seus ensaios surgem como antídoto face a um culturalismo inóquo, ao “tempo detergente”, e o êxtase reflexivo que caracteriza as suas incursões em que o pensamento não se deixa interromper, viajando “no tempo e na memória com o coração atrelado à inteligência”, preferindo seguir intuições à montagem e remontagem de cronologias, das últimas perícias feitas no campo da história literária, e, por isso, contrariando a regra, o seu discurso não é interrompido por notas de rodapé, lembra Onésimo Teutónio Almeida. “Na verdade, Eduardo Lourenço não cita, alude. Menciona. Muitas vezes obliquamente. O leitor habituou-se a ter confiança na memória dele e segue em frente procurando não perder o fio à meada do raciocínio. Deixa as referências ao cuidado dos bibliógrafos. Porque o seu ensaio é conversa em monólogo de um cérebro ruminante que devora tudo à sua volta e tudo processa, realizando depois esse prodígio de um discurso coerente e estruturado que corre límpido, sem se preocupar com demonstrações pormenorizadas. Disse límpido, mas deveria mesmo ter dito transparente e luminoso”, adianta.

De algum modo, o ímpeto desta obra parece nascer de uma desilusão perante a própria crítica, a sua desistência em tantas frentes, apenas para respeitar modelos e fórmulas tipificadas de forma a que os autores pudessem fazer boa figura na formação. Assim, infelizmente, como disse Lourenço, “ninguém é crítico para naufragar heroicamente no mar que lê”. Entendia, além do mais, que a tradição literária portuguesa, marcada por um temperamento ostensivamente conservador, se não mesmo reacionário, sempre foi hostil à desordem, suportando mal o caos, ainda que este fosse genial. Assim, existe nos seus ensaios uma espécie de ira diluída, a qual reclama “o direito ao absurdo dos demais e seu” (Maria Velho da Costa). E, muito embora numa atitude cada vez mais imperturbável, a sua obra ergue-se com um testemunho de acusação frente a esses que considerava “os moedeiros falsos da escroqueria contínua da feira das vaidades literárias, fantasmas tão bem alimentados por aqueles que só podem ter como sangue linfa ectoplásmica que o pobre, o eterno público logrado acredita na sua existência”. E é pena, de resto, que muitas das suas últimas aparições se tenham caracterizado por uma incapacidade de se furtar a golpes de oportunismo publicitário, em que o seu próprio perfil era convocado para o género de coreografias e rituais com os quais se faz celebrar a nossa tão enfadonha vida política e mesmo a académica. Mas lendo os seus ensaios, vemos nele sempre um esforço por superar essa forma da cultura que exprime se exprime apenas como juros acumulados, um crédito adiado, persistindo sobretudo num nível degradado, enquanto reflexo, nesse “farisaísmo” que tudo trai, não apenas a cultura como a própria vida.

Através de uma escrita que, enquanto parece embalar-nos, acaba por estremecer a sério, “com um fervor genuíno e com uma naturalidade despertada”, Eduardo Lourenço via a arte, em termos de imaginação e de sensibilidade, como “o combate dos homens  pela sua própria realidade, quer dizer, o lugar mesmo no qual nós sentimos, vemos e compreendemos que a Realidade é agonia da realidade, autocomsumpção e ressurreição”. E entendia este combate como uma espécie de cruzada essencial “numa época como a nossa em que se tocam com o mais extremo frenesi o sentimento de uma radical fragilidade da história humana no seu conjunto e o sentimento de que essa mesma História é a mais potente e mesmo a única realidade”. Assim, valorizava acima de tudo as obras na medida do grau de realidade que manifestavam, deixando-se interrogar ou interpelar, e lembrava que, mesmo que se entenda que os deuses desertaram, isso não nos deve desmobilizar, antes nos responsabiliza quanto à definição de um destino. Em “O Canto do Signo”, diz-nos que “a nossa questão é a mesma de Hamlet, mas sem o reino da Dinamarca para nos justificar, sem crânio repousante para suportar a angústia do mundo, sem ‘ser’ ou ‘não-ser’, apesar de tudo, luminosamente divididos pela presença da Morte que como príncipes sarcásticos segurávamos nas mãos com um à-vontade de coveiros e uma intimidade de monges.”

Ressuscitando o mito, Lourenço insurge-se com aquela carga de fantasia que se sabe fora do mundo, opondo-se ao fácil pessimismo apocalíptico de muitos maestros da retórica que hoje triunfa, esses que se comprazem, como nos diz Claudio Magris, em anunciar continuamente desastres e em proclamar que a vida não é mais que vazio, erros e horror. Assim, o seu mito é uma insurreição absurdamente inactual, quase delirante se não estivesse investido de uma tão grande lucidez, estabelecendo uma cadeia de nexos e apertando as rédeas para controlar um fulgor colectivo. Enquanto crítico, Lourenço leu as obras dos seus contemporâneos, forjando essa trama de ecos que foi muitas vezes o único sinal de que certos textos poderiam vingar de algum modo, e o impacto das suas leituras foi de tal ordem que reconheceu como muitas vezes o que não lhe perdoaram não foi tanto o que escreveu sobre elas, mas acima de tudo o facto de sobre algumas não ter escrito. Os seus ensaios, mais do que apreciações em diálogo com as obras, cruzam as suas coordenadas, estabelecendo um mapa, e mais ninguém depois dele teve a ousadia de estabelecer tão decisivas panorâmicas coma as que traçou para a geração neo-realista, ou para a Presença, mas sobretudo essa visão panóptica que elaborou, em 1966, da ficção portuguesa contemporânea, em “Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos”, publicada originalmente nas páginas da revista “O Tempo e o Modo”.

Magris diz-nos que só a poesia é capaz de representar as contradições sem resolvê-las conceptualmente, antes compondo-as numa unidade superior, elusiva e musical. E foi isto o que fez Eduardo Lourenço nos seus ensaios, afastando-se de uma crítica que presume esclarecer os enigmas das obras, assumindo antes um papel central, mesmo se iluminando os aspectos dessa construção da realidade que só a literatura consegue fazer levando a linguagem às suas últimas consequências. Ou seja, fazendo ecoar as palavras daqueles que mais lhes esforçaram o sentido, apelando a esse nomadismo sensível que faz dos homens seres capazes de viajar entre dimensões, de constituir uma teia musical entre épocas, e que mesmo na sua inconstância e fragilidade exprimem essa insatisfação essencial diante do presente. Nos seus ensaios, mesmo o desencantamento nos surge como uma forma irónica, melancólica e aguerrida da esperança. A ousadia sucessiva das suas indagações em torno dos textos literários não foi o que fez dele um intelectual conhecido do grande público, esse “pensador de serviço da nação”, mas foi o atrevimento e mesmo a coragem com que, ao longo dos anos, foi esboçando a própria disquisição de um povo em torno de si mesmo, das suas dúvidas, desejos e ansiedade, inventando-lhe uma alma por meio do confronto com as suas fraquezas e temores, relevando aspectos decisivos dessa “comunidade que vive numa espécie de irrealismo prodigioso”. Em “O Labirinto da Saudade” falava da “mistura fascinante de fanfarronice e humildade, de imprevidência moura e confiança sebastianista, de ‘inconsciência alegre’ e negro presságio, que constitui o fundo do carácter português”. Notava ainda que “as ‘Histórias de Portugal’, todas, se exceptuarmos o limitado mas radical e grandioso trabalho de Herculano, são modelos de ‘robinsonadas’: contam as aventuras celestes de um herói isolado num universo previamente deserto. Tudo se passa como se não tivéssemos interlocutor”. Adiantando que “esta famosa forma mentis reflecte-se na nossa criação literária, toda encharcada de monólogos, o que explica, ao mesmo tempo, a nossa antiga carência de fundo em matéria teatral e romanesca”.

Caracterizou também esta tragédia meio dissoluta de um povo “de súbito reduzido à estreita faixa atlântica que nunca nos bastou, mas que é agora o nosso navio de regresso, encalhado à força na barra do Tejo”. E viu-nos cair nas mãos de uns miseráveis estrategas, tecnocratas aproveitando-se do regime mais débil das convicções, o de um ignaro pragmatismo desprovido de qualquer capacidade de sonhar o futuro ou o passado, valendo-se da nossa carência económica, “que aos poucos se tornou a única verdade que os Portugueses sentem, embora como de costume a ela se não adaptem, procurando em novos mitos o perfil de uma dignidade que ninguém assume na dependência orgânica de outrem”. Teve também a coragem de apontar o dedo a todas as formas de degenerescência da cultura, que se ramificou numa série de cultos imbecilizantes, e apontou o dedo ao “benfiquismo ingénuo mas nefasto com que nos contemplamos e nos descrevemos nos indestrutíveis discursos oficiais”. Denunciou também a forma como, nem o estatuto democrático da imprensa, pôs fim ao regime parasitário no qual “reina a bajulação avulsa dos caciques que entre si jogam aos dados nas costas do povo português os poderes e as benesses de que se instituíram herdeiros”.

A sua obra dificilmente aceita sínteses, e o aspecto mais glorioso da sua influência é a forma como o vamos vendo citado de forma truncada, tantas vezes distorcida nas obras e nos discursos de tantas figuras que nem se dão ao trabalho de o nomear, como se as noções por ele cunhadas fossem moeda corrente, como se ele fosse essa consciência que se generalizava, ainda que de forma um tanto torpe, como se o seu juízo se impusesse pela naturalidade e enlevo com que as suas leituras e opiniões iam sendo acatadas, e isto num país que se condena da pior forma, fechando-se no silêncio, um país que desenvolveu todo um catálogo de torturas motivadas pelos ressentimento. “Os Portugueses não convivem entre si, como uma lenda tenaz proclama, espiam-se, controlam-se uns aos outros; não dialogam, disputam-se, e a convivência é uma osmose do mesmo ao mesmo, sem enriquecimento mútuo, que nunca um português confessará que aprendeu alguma coisa de um outro, a menos que seja pai ou mãe”, escreveu ele. Mas, tal como disse a propósito de Camões, cuja impávida imortalidade não o contentou e por isso fez questão de desdobrar-lhe o eco contra novos horizontes, “só ele mesmo se podia pagar pelas suas próprias mãos, confundindo num só canto a errância pátria e a sua mortal peregrinação”. E, de igual modo, também assim Eduardo Lourenço se fez pagar pelas suas próprias mãos, confundindo o próprio país na sua consciência, em que tantos portugueses, sem nem mesmo o saberem, são personagens dele, e falam, tantas vezes emproadamente, as falas que ele lhes deu para lerem.