Cunha Rodrigues: memórias improváveis


Cunha Rodrigues tinha uma ideia da justiça que correspondia, precisamente, à maneira como exerceu o cargo de Procurador-Geral e, nessa circunstância, foi, devemos reconhecer, totalmente coerente.


No intervalo de uma das minhas deslocações entre a Holanda e Portugal, hoje mais reguladas devido à pandemia que aflige fortemente os dois países, deparei, numa livraria, com o livro recém-editado de Cunha Rodrigues, MEMÓRIAS IMPROVÁVEIS – Os Longos Anos de um Procurador-Geral.

Para muitos, o subtítulo deveria ter sido «Os Longos Anos do Procurador-Geral», pois, jamais, tal cargo se identificou tanto com uma pessoa como aconteceu com Cunha Rodrigues.

Claro está que Cunha Rodrigues desempenhou, depois, cargos de igual ou, porventura, maior relevância: recorde-se que foi Juiz do Tribunal de Justiça da União Europeia.

Contudo, a imagem que todos os portugueses dele conservam tem, sobretudo, a ver com a dos anos em que exerceu a função de Procurador-Geral.

Não que tivesse sido o primeiro Procurador-Geral da democracia.

Outros, antes dele, desempenharam, também, o mesmo cargo com a maior distinção.

No entanto, nenhum deles conseguiu emprestar-lhe a projeção pública e o prestígio institucional que Cunha Rodrigues lhe transmitiu.

Quem ler o livro perceberá que se trata de um personagem de outro tempo e que exerceu tal função em tempos outros.

Não teria de ter sido necessariamente assim, mas foi assim que aconteceu. Com ele, creio, aliás, tinha imperiosamente de acontecer como aconteceu.

O tempo correu, entretanto, e acelerou-se demasiado, ultimamente, o que nos leva a esquecer muita coisa e a razão das coisas: por isso, é tão importante este livro, agora.  

Cunha Rodrigues tinha uma ideia da justiça que correspondia, precisamente, à maneira como exerceu o cargo e, nessa circunstância, foi, devemos todos reconhecer, totalmente coerente.

A forma como desempenhou aquela sua função marcou, sem dúvida, para futuro, a posição que é atribuída, ainda hoje, na nossa vida político-institucional, ao Procurador-Geral.

Disso puderam beneficiar – e também lastimar-se – os seus sucessores.

Todos tiveram, num momento ou noutro, para o bem e para o mal, de se confrontar com aquele seu modelo e desempenho.

Cunha Rodrigues moldou o lugar de Procurador-Geral da República portuguesa no momento mais eletrizante da construção institucional da democracia e da invenção e afirmação dos instrumentos do seu Estado de Direito.

O que relata no livro – numa perspetiva muito pessoal, diga-se – são, precisamente, os passos e as lutas que percorreu e travou para chegar a consolidar aquela sua visão da Procuradoria-Geral, do Procurador-Geral e do próprio Ministério Público (MP).

Muitas outras leituras dos mesmos factos podem, porém, como é natural, coexistir: existirão, por certo.

Tudo depende, com efeito, da interpretação que deles tivermos e da iluminação que sobre eles fizermos incidir; sobre os factos que quisermos realçar e aqueles que, por qualquer motivo, não quisermos destacar.

Quem tiver lido O QUARTETO DE ALEXANDRIA, de Lawrence Durrell, sabe bem como, com base nos mesmos factos, as personagens que os viveram podem contar estórias bem diferentes.

Tive a oportunidade, a honra e a satisfação de ter trabalhado, durante o mandato de Cunha Rodrigues, em diversas circunstâncias e em diferentes posições: como magistrado – ainda novo e inexperiente – e, sobretudo, como um membro do Sindicato do MP, que, nessa organização, ocupou diferentes funções.

Esse convívio sempre respeitoso e, conforme os momentos, mais ou menos distante, mais ou menos próximo, muito contribuiu para a minha formação pessoal e para a maneira como eu e os meus colegas entendemos, na altura – e foram alturas bem sensíveis –, o posicionamento institucional do MP e do Sindicato e a importância e o cuidado a ter com a projeção pública das tomadas de posição deste.

Tinha, então, a ideia de que Cunha Rodrigues nunca havia, porém, alcançado perfeitamente todas as características do movimento associativo do MP português da época.

Escapava-lhe, acreditava, a razão de ser da sua identidade própria, a sua facilidade e capacidade de dialogar com todas as forças e dirigentes políticos que se reviam na Constituição e, por outro lado, a formação, experiência política e sentido da responsabilidade que muitos dos seus dirigentes haviam adquirido nas lutas que travaram no âmbito do movimento associativo estudantil democrático anterior ao 25 de Abril.

Lendo hoje o livro, e reparando na desproporção da dimensão da análise que nele dedica às experiências históricas do sindicalismo judicial estrangeiro em comparação com a que presta à história e a ação do associativismo judicial português e, em especial, à do Sindicato do MP, no período em que desempenhou tais funções, parece confirmar-se essa sua já antiga dificuldade.

Talvez por isso, no livro, se não evidencie devidamente – ao contrário do que, porventura, mereceria – o papel direto e insubstituível do Sindicato nesse período.

Falo, por exemplo, na intervenção fundamental que este teve na negociação política que conduziu à consagração do princípio da autonomia do MP, na Constituição, e na posterior e consequente inclusão, nesta, do princípio da legalidade como orientador do exercício da ação penal.

Sem essa intervenção determinante, há muito que o atual edifício em que assenta justiça penal em Portugal teria ruído.

Muitas e diversificadas foram, com efeito, na altura, as relevantes intervenções institucionais do Sindicato na construção do edifício legal do atual MP – em consonância, quase sempre, com Cunha Rodrigues, é certo – e que ultrapassaram, em muito, os protestos ou os repetidos apoios mediáticos à ação pessoal do então Procurador-Geral e que o autor tão bem destaca no livro.

O processo de democratização da Justiça portuguesa e o MP tiveram a sorte única de contar, então, com Cunha Rodrigues.

O Procurador-Geral teve a sorte de poder contar, nessa hora, com um Sindicato em que pontificavam, por exemplo, magistrados como Guilherme da Fonseca, Mário Torres e Artur Maurício, magistrados que, pelo seu prestígio profissional e, quase todos, pela sua experiência política, muito ajudaram Cunha Rodrigues – mesmo quando dele discordavam – na criação de uma magistratura nova e regida pelos princípios constitucionais.

Esses eram, porém – e como disse – outros tempos: tempos de entusiasmo, coerência, coesão, verdadeira coragem e permanente sentido coletivo das responsabilidades institucionais.    

Cunha Rodrigues: memórias improváveis


Cunha Rodrigues tinha uma ideia da justiça que correspondia, precisamente, à maneira como exerceu o cargo de Procurador-Geral e, nessa circunstância, foi, devemos reconhecer, totalmente coerente.


No intervalo de uma das minhas deslocações entre a Holanda e Portugal, hoje mais reguladas devido à pandemia que aflige fortemente os dois países, deparei, numa livraria, com o livro recém-editado de Cunha Rodrigues, MEMÓRIAS IMPROVÁVEIS – Os Longos Anos de um Procurador-Geral.

Para muitos, o subtítulo deveria ter sido «Os Longos Anos do Procurador-Geral», pois, jamais, tal cargo se identificou tanto com uma pessoa como aconteceu com Cunha Rodrigues.

Claro está que Cunha Rodrigues desempenhou, depois, cargos de igual ou, porventura, maior relevância: recorde-se que foi Juiz do Tribunal de Justiça da União Europeia.

Contudo, a imagem que todos os portugueses dele conservam tem, sobretudo, a ver com a dos anos em que exerceu a função de Procurador-Geral.

Não que tivesse sido o primeiro Procurador-Geral da democracia.

Outros, antes dele, desempenharam, também, o mesmo cargo com a maior distinção.

No entanto, nenhum deles conseguiu emprestar-lhe a projeção pública e o prestígio institucional que Cunha Rodrigues lhe transmitiu.

Quem ler o livro perceberá que se trata de um personagem de outro tempo e que exerceu tal função em tempos outros.

Não teria de ter sido necessariamente assim, mas foi assim que aconteceu. Com ele, creio, aliás, tinha imperiosamente de acontecer como aconteceu.

O tempo correu, entretanto, e acelerou-se demasiado, ultimamente, o que nos leva a esquecer muita coisa e a razão das coisas: por isso, é tão importante este livro, agora.  

Cunha Rodrigues tinha uma ideia da justiça que correspondia, precisamente, à maneira como exerceu o cargo e, nessa circunstância, foi, devemos todos reconhecer, totalmente coerente.

A forma como desempenhou aquela sua função marcou, sem dúvida, para futuro, a posição que é atribuída, ainda hoje, na nossa vida político-institucional, ao Procurador-Geral.

Disso puderam beneficiar – e também lastimar-se – os seus sucessores.

Todos tiveram, num momento ou noutro, para o bem e para o mal, de se confrontar com aquele seu modelo e desempenho.

Cunha Rodrigues moldou o lugar de Procurador-Geral da República portuguesa no momento mais eletrizante da construção institucional da democracia e da invenção e afirmação dos instrumentos do seu Estado de Direito.

O que relata no livro – numa perspetiva muito pessoal, diga-se – são, precisamente, os passos e as lutas que percorreu e travou para chegar a consolidar aquela sua visão da Procuradoria-Geral, do Procurador-Geral e do próprio Ministério Público (MP).

Muitas outras leituras dos mesmos factos podem, porém, como é natural, coexistir: existirão, por certo.

Tudo depende, com efeito, da interpretação que deles tivermos e da iluminação que sobre eles fizermos incidir; sobre os factos que quisermos realçar e aqueles que, por qualquer motivo, não quisermos destacar.

Quem tiver lido O QUARTETO DE ALEXANDRIA, de Lawrence Durrell, sabe bem como, com base nos mesmos factos, as personagens que os viveram podem contar estórias bem diferentes.

Tive a oportunidade, a honra e a satisfação de ter trabalhado, durante o mandato de Cunha Rodrigues, em diversas circunstâncias e em diferentes posições: como magistrado – ainda novo e inexperiente – e, sobretudo, como um membro do Sindicato do MP, que, nessa organização, ocupou diferentes funções.

Esse convívio sempre respeitoso e, conforme os momentos, mais ou menos distante, mais ou menos próximo, muito contribuiu para a minha formação pessoal e para a maneira como eu e os meus colegas entendemos, na altura – e foram alturas bem sensíveis –, o posicionamento institucional do MP e do Sindicato e a importância e o cuidado a ter com a projeção pública das tomadas de posição deste.

Tinha, então, a ideia de que Cunha Rodrigues nunca havia, porém, alcançado perfeitamente todas as características do movimento associativo do MP português da época.

Escapava-lhe, acreditava, a razão de ser da sua identidade própria, a sua facilidade e capacidade de dialogar com todas as forças e dirigentes políticos que se reviam na Constituição e, por outro lado, a formação, experiência política e sentido da responsabilidade que muitos dos seus dirigentes haviam adquirido nas lutas que travaram no âmbito do movimento associativo estudantil democrático anterior ao 25 de Abril.

Lendo hoje o livro, e reparando na desproporção da dimensão da análise que nele dedica às experiências históricas do sindicalismo judicial estrangeiro em comparação com a que presta à história e a ação do associativismo judicial português e, em especial, à do Sindicato do MP, no período em que desempenhou tais funções, parece confirmar-se essa sua já antiga dificuldade.

Talvez por isso, no livro, se não evidencie devidamente – ao contrário do que, porventura, mereceria – o papel direto e insubstituível do Sindicato nesse período.

Falo, por exemplo, na intervenção fundamental que este teve na negociação política que conduziu à consagração do princípio da autonomia do MP, na Constituição, e na posterior e consequente inclusão, nesta, do princípio da legalidade como orientador do exercício da ação penal.

Sem essa intervenção determinante, há muito que o atual edifício em que assenta justiça penal em Portugal teria ruído.

Muitas e diversificadas foram, com efeito, na altura, as relevantes intervenções institucionais do Sindicato na construção do edifício legal do atual MP – em consonância, quase sempre, com Cunha Rodrigues, é certo – e que ultrapassaram, em muito, os protestos ou os repetidos apoios mediáticos à ação pessoal do então Procurador-Geral e que o autor tão bem destaca no livro.

O processo de democratização da Justiça portuguesa e o MP tiveram a sorte única de contar, então, com Cunha Rodrigues.

O Procurador-Geral teve a sorte de poder contar, nessa hora, com um Sindicato em que pontificavam, por exemplo, magistrados como Guilherme da Fonseca, Mário Torres e Artur Maurício, magistrados que, pelo seu prestígio profissional e, quase todos, pela sua experiência política, muito ajudaram Cunha Rodrigues – mesmo quando dele discordavam – na criação de uma magistratura nova e regida pelos princípios constitucionais.

Esses eram, porém – e como disse – outros tempos: tempos de entusiasmo, coerência, coesão, verdadeira coragem e permanente sentido coletivo das responsabilidades institucionais.