Culpado


A casa da justiça é a casa da verdade – mas o que é a verdade?


Deparei recentemente com uma escultura à volta da qual se encontravam duas pessoas a discutir o pormenor da venda nos olhos daquela estátua. A questão prendia-se com a ideia de que a justiça deve ser cega ou, pelo contrário, deve ter os olhos bem abertos para poder olhar e conhecer. A discussão, no entanto, mudou de rumo. Já não se tratava da estátua nem de ideias, mas da corrupção em Portugal e de casos mediáticos.

Segundo a mitologia grega, a figura feminina que representa o juramento dos homens e a lei é a divindade Thémis, filha de Urano (Céu) e de Gaia (Terra). Na Grécia, a justiça viria a ser representada pela deusa Diké (filha de Thémis) que, de olhos abertos, segura uma espada e uma balança ou, por vezes, exibe tão-somente uma balança, ou ainda uma balança e uma cornucópia. Mas é em Roma que a deusa Ivstitia aparece de olhos vendados, sustentando uma balança com o fiel ao meio.

Porque herdámos os pensamentos grego e romano, acolhemos a ideia de justiça como sendo sagrada, e por isso a respeitamos e nela acreditamos. A casa da justiça é a casa da verdade – mas o que é a verdade?

É prática comum entre os homens o recurso à ideia de justiça. Sem ela não conseguimos viver em sociedade ou, pelo menos, numa sociedade pacífica. Desempenhar a função de juiz não é para todos, pois nem todos estamos preparados para servir ideais. É comum escutar quem afirme e reitere a sua confiança na justiça. Porém, essa mesma confiança parece dissipar-se depois do veredicto. Alguns criminosos não perceberam ainda que não é o julgamento que lhes limpa o espírito ou a consciência. Como é evidente, a consciência pode-se sempre moldar e perverter; já o espírito…

Assim sendo, parece-me oportuno partilhar uma história que terá acontecido num reino onde a justiça estava corrompida. Conta a lenda que, na Idade Média, um homem foi injustamente acusado de ter cometido um crime. Na verdade, o autor desse crime era uma pessoa muito influente no reino e, por isso, desde o primeiro momento pediu ao juiz que alguém fosse acusado e condenado no seu lugar. Um inocente foi levado a julgamento, sabendo que daí resultaria uma condenação certa: a forca! O juiz, conivente, simulando um julgamento justo, declara: “Sou profundamente religioso, por isso vou deixar a tua sorte nas mãos do Senhor. Vou escrever num papel a palavra inocente e noutro a palavra culpado. Desta forma, a ti caberá escolher um dos papéis e aquele que escolheres será a sentença final”.

Sem que alguém percebesse, o juiz escreveu em ambos os papéis a palavra culpado, fazendo assim com que não houvesse alternativa para o homem. De seguida apresentou-os sobre a mesa e ordenou ao acusado que escolhesse um. O homem, pressentindo o embuste, fingiu concentrar-se por alguns segundos para fazer a escolha certa. Aproximou-se, confiante, da mesa, pegou num dos papéis e colocou-o rapidamente na boca, engolindo-o. Os presentes reagiram, surpreendidos e indignados com tal atitude. O homem, demonstrando esperança, disse: “Agora, para que se faça justiça, bastará ler o papel que se encontra sobre a mesa e assim todos tomaremos conhecimento da minha escolha”.

 

Professor e investigador