A guerra, numa televisão perto de si


O admirável mundo novo trouxe-nos a guerra perfeita, sem vítimas por parte dos combatentes vencedores, mais barata e a cores. Le progrès!


O leitor que, tentado pelo título, espera encontrar nestas linhas uma narrativa dos feitos e glórias da Evita da Malveira fica desde já avisado: a guerra aqui contada não se passa no interior de uma qualquer televisão lusitana, não opõe reguladores, accionistas, administradores, apresentadores ou sequer apresentadores-accionistas-administradores.

A guerra que nos tem sido servida nas últimas semanas é extraordinariamente perigosa. É-o não só para os que se encontram no teatro de guerra, onde se morre e se fica estropiado, como em todas as guerras. Esta guerra é também perigosa para todos os que, no conforto do lar, obedientemente confinados, seguem a partir do sofá o conflito. Nesta guerra, os beligerantes filmam-se e disponibilizam as imagens ao gentil público. A destruição de alvos, supostamente militares, surge no ecrã televisivo com a precisão e leveza de um jogo de vídeo. Aqui um tanque que explode, ali uma bateria antiaérea que desaparece envolta numa nuvem de fumo, acolá um blindado que é volatizado.

O mais recente episódio do conflito no Nagorno-Karabakh (NK) é a primeira guerra pós-moderna, uma guerra em que a intervenção dos combatentes humanos é quase sempre substituída pela tecnologia. A maior parte do equipamento militar do Azerbaijão, o derrotado neste conflito, foi destruída por drones, operados a muitas dezenas ou centenas de quilómetros de distância. O drone marca o triunfo da industrialização da tecnologia, dispensa a presença no teatro de guerra de um soldado. Não estando presente, o soldado não corre o risco de morrer ou de ficar estropiado, o que é, para o próprio e para os que lhe querem bem, excelente. É ainda mais excelente para os decisores políticos na medida em que não têm de prestar contas às famílias, amigos e eleitores em geral pelas baixas que sempre ocorreriam nas forças enviadas para o conflito.

Tanta excelência mereceria um prémio Nobel a ser concedido aos fabricantes de drones. A distância a que é operado o drone, o cuidado posto na filmagem do ataque e a divulgação do sucesso trazem consigo a ideia de uma guerra asséptica, sem vítimas, como se a visão do drone fosse a única visão do conflito (é a única que é de imediato disponibilizada). No conflito no NK não só os drones venceram militarmente como venceram a batalha da comunicação. Contra as imagens de destruição distribuídas pelas televisões azeris mobilizaram os arménios conferências de imprensa tradicionais, com o mesmo grau de sucesso comunicacional que pela Lusitânia têm as da DGS.

O drone permitiu passar do modo fire and forget para um muito mais eficaz fire and record. O testemunho do feito fica por conta do operador do drone. A responsabilização pelo uso dos drones fica limitada à prova que é fornecida por quem os comanda…

O conflito no NK mudou a forma como serão travadas as próximas guerras. Os exércitos convencionais revelaram-se impotentes face a drones armados que são difíceis de detectar e ainda mais difíceis de abater. Aparentemente, a melhor forma de destruir um drone é… utilizar outro drone. O crescendo de sofisticação tecnológica poderá levar à perfeição do combate: drones contra drones, sem combatentes humanos. Esta distopia pretende fazer esquecer que mesmo sem combatentes haverá vítimas por entre os não combatentes. Mas não, argumentam os crentes na inteligência artificial. Ao contrário dos humanos, os drones serão capazes de avaliar o risco adequado em cada situação de conflito e, sem hesitações e estados de alma, serão capazes de minimizar as baixas.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


A guerra, numa televisão perto de si


O admirável mundo novo trouxe-nos a guerra perfeita, sem vítimas por parte dos combatentes vencedores, mais barata e a cores. Le progrès!


O leitor que, tentado pelo título, espera encontrar nestas linhas uma narrativa dos feitos e glórias da Evita da Malveira fica desde já avisado: a guerra aqui contada não se passa no interior de uma qualquer televisão lusitana, não opõe reguladores, accionistas, administradores, apresentadores ou sequer apresentadores-accionistas-administradores.

A guerra que nos tem sido servida nas últimas semanas é extraordinariamente perigosa. É-o não só para os que se encontram no teatro de guerra, onde se morre e se fica estropiado, como em todas as guerras. Esta guerra é também perigosa para todos os que, no conforto do lar, obedientemente confinados, seguem a partir do sofá o conflito. Nesta guerra, os beligerantes filmam-se e disponibilizam as imagens ao gentil público. A destruição de alvos, supostamente militares, surge no ecrã televisivo com a precisão e leveza de um jogo de vídeo. Aqui um tanque que explode, ali uma bateria antiaérea que desaparece envolta numa nuvem de fumo, acolá um blindado que é volatizado.

O mais recente episódio do conflito no Nagorno-Karabakh (NK) é a primeira guerra pós-moderna, uma guerra em que a intervenção dos combatentes humanos é quase sempre substituída pela tecnologia. A maior parte do equipamento militar do Azerbaijão, o derrotado neste conflito, foi destruída por drones, operados a muitas dezenas ou centenas de quilómetros de distância. O drone marca o triunfo da industrialização da tecnologia, dispensa a presença no teatro de guerra de um soldado. Não estando presente, o soldado não corre o risco de morrer ou de ficar estropiado, o que é, para o próprio e para os que lhe querem bem, excelente. É ainda mais excelente para os decisores políticos na medida em que não têm de prestar contas às famílias, amigos e eleitores em geral pelas baixas que sempre ocorreriam nas forças enviadas para o conflito.

Tanta excelência mereceria um prémio Nobel a ser concedido aos fabricantes de drones. A distância a que é operado o drone, o cuidado posto na filmagem do ataque e a divulgação do sucesso trazem consigo a ideia de uma guerra asséptica, sem vítimas, como se a visão do drone fosse a única visão do conflito (é a única que é de imediato disponibilizada). No conflito no NK não só os drones venceram militarmente como venceram a batalha da comunicação. Contra as imagens de destruição distribuídas pelas televisões azeris mobilizaram os arménios conferências de imprensa tradicionais, com o mesmo grau de sucesso comunicacional que pela Lusitânia têm as da DGS.

O drone permitiu passar do modo fire and forget para um muito mais eficaz fire and record. O testemunho do feito fica por conta do operador do drone. A responsabilização pelo uso dos drones fica limitada à prova que é fornecida por quem os comanda…

O conflito no NK mudou a forma como serão travadas as próximas guerras. Os exércitos convencionais revelaram-se impotentes face a drones armados que são difíceis de detectar e ainda mais difíceis de abater. Aparentemente, a melhor forma de destruir um drone é… utilizar outro drone. O crescendo de sofisticação tecnológica poderá levar à perfeição do combate: drones contra drones, sem combatentes humanos. Esta distopia pretende fazer esquecer que mesmo sem combatentes haverá vítimas por entre os não combatentes. Mas não, argumentam os crentes na inteligência artificial. Ao contrário dos humanos, os drones serão capazes de avaliar o risco adequado em cada situação de conflito e, sem hesitações e estados de alma, serão capazes de minimizar as baixas.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990