cor·rup·te·la |é|
(latim corruptela, -ae, o que estraga, corrompe, depravação)
Perdoe o leitor por ter iniciado esta crónica com a definição do termo que é usado como título. Pode justificar-se este inabitual início por se tratar de um termo muito pouco utilizado, na expressão oral e escrita, apesar de o fenómeno que lhe associo, e que discuto seguidamente, ser tão velho como a Sé de Braga.
Ela anda por aí – sim, a corruptela –, é parte do dia-a-dia dos cidadãos. De modo geral, afeta todo aquele que tem de interagir com serviços públicos. Há quem a designe como “o pequeno poder do funcionário público”, para significar o ascendente que esse funcionário se arroga relativamente ao cidadão que consigo interage, impondo-lhe uma decisão nem sempre completamente escudada na Lei, mas que ele propõe como se o fosse.
Um pequeno exemplo pode ajudar a perceber o entendimento que se pretende dar ao termo na presente crónica. Num prédio de múltiplos andares em propriedade horizontal, um cidadão decidiu dividir um desses andares em duas frações autónomas. Para isso obteve as necessárias autorizações, fez a escritura de formalização da mudança, contratou serviços técnicos de qualidade para proceder às obras necessárias à divisão. Terminadas tais obras, solicitou a vistoria dos espaços junto dos serviços de urbanismo de uma das principais autarquias do país. Foi-lhe comunicado que, devido à situação pandémica que o país vive, a visita seria virtual, via “Whatsapp”. Assim foi. O técnico responsável pela obra, “smartphone” em punho, foi percorrendo os espaços, enquanto do outro lado a técnica camarária, em pleno ato de ingestão de alimentos, ia dando ordens. “Onde estão os contadores da eletricidade?” E lá lhe foram mostrados, no espaço anexo ao átrio de entrada, onde ficavam todos os contadores das restantes frações. “Não aprovo a obra!”, disse, entre duas dentadas na sandes que segurava na mão. “Os contadores têm de estar na parede exterior do prédio, acessíveis a partir do passeio da rua”. De nada valeram os argumentos aduzidos, quanto a tal requisito não ser obrigatório por lei para um prédio com a idade daquele, ao facto de as obras não terem mexido no exterior do prédio, de … A dita técnica não alterou o seu veredicto. A obra estava reprovada. Um desfecho típico de um caso de corruptela.
“Este tipo de comportamento, sem suporte na Lei, não é de todo novo.”, explicou o técnico da obra ao proprietário. “Se não é por uma coisa, é por outra. Na generalidade dos casos é mera prepotência, que se resolve com uma enorme carga de trabalho burocrático, para apresentar requerimentos, para responder aos ofícios de resposta aos requerimentos, para mais requerimentos …”. Assim aconteceu desta vez. A obra veio a ser aprovada, depois de um requerimento, de duas respostas a ofícios, de um novo pedido de vistoria. Casos há, porém, em que as reclamações acabam por ir parar ao tribunal, com custos monetários para o cidadão e o inerente contributo para a sobrecarga de processos aguardando decisão judicial.
Discute-se bastante o fenómeno da corrupção, mas pouco se diz sobre a corruptela. Porém, sem necessidade de fazer recurso a um elaborado exercício de imaginação, pode ver-se esta última, em muitos casos, como a motivação para a ocorrência da primeira. Voltando ao caso apresentado, o obviar ao trabalho burocrático resultante da não aprovação da obra poderia ter levado a que se procurasse obter o parecer da técnica camarária à custa de uma “lembrança” que retirasse os seus entraves do caminho.
Mesmo não contando com a possibilidade deste tipo de comportamento por parte de alguns funcionários públicos poder descambar para relações de efetiva corrupção, a corruptela leva sempre a situações de desperdício de recursos, quer da parte do cidadão, quer da dos serviços públicos, por via das reclamações, requerimentos, ofícios, deslocações e reuniões que implica.
Por vezes ouve-se que a corruptela é fruto da fraca formação técnica dos funcionários públicos, que não dominando cabalmente os assuntos utilizam a prepotência nas suas interações com os cidadãos para esconderem situações de ignorância. Uma parte do problema pode ter esta origem. Mas não parece que explique a totalidade, embora também não pareça existir da parte do poder político interesse em averiguar a causa. Mas tal poderia ser feito. Se de cada vez em que viesse a ser dada razão a um cidadão, na sequência de uma reclamação, se inquirisse a correção dos procedimentos e atuações do funcionário que liderou o processo subjacente a tal reclamação, resultando daí consequências – no mínimo a obrigatoriedade de frequentar ações de formação –, então a corruptela seria menos exuberante e pervasiva. Desse modo, se limitaria a ocorrência de tais situações e criava-se junto dos cidadãos a sensação de que até os funcionários públicos têm de prestar contas dos seus atos.
À sua maneira, subtil, a corruptela acaba por minar o sistema de relações cidadãos–administração pública, por o corromper, levando à sua desestruturação por via da erosão da confiança mútua que provoca. Aquela administração, instituída e paga para permitir e facilitar a vida dos cidadãos em sociedade, aparece, então, como um obstáculo a que essa vida, dentro dos limites impostos pela Lei, flua com normalidade.