Na passada sexta-feira, o Parlamento aprovou a renovação do estado de emergência solicitado pelo Presidente da República, o que permitiu a publicação por este do correspondente decreto 59-A/2020, de Novembro. No sábado, o Governo publicou por sua vez o decreto 9/2020, de 21 de Novembro, de regulamentação do estado de emergência. No discurso de ambos foi abandonada de vez a verdadeira ficção de que Portugal viveria num “estado de emergência limitado e preventivo”. O estado de emergência ganha maior dimensão a cada renovação e assume contornos cada vez mais repressivos, sendo algumas das suas medidas claramente injustificadas.
Salienta-se, em primeiro lugar, que o art.o 4.o, b) do decreto 59-A/2020 estabelece que “na medida do estritamente necessário e de forma proporcional, pode ser imposto o confinamento compulsivo em estabelecimento de saúde, no domicílio ou, não sendo aí possível, noutro local definido pelas autoridades competentes, de pessoas portadoras do vírus SARS-CoV-2, ou em vigilância ativa”. Neste momento, “as autoridades competentes” passam assim a poder decretar o encerramento em qualquer lugar de qualquer pessoa, desde que esteja em vigilância activa, nem sequer se exigindo que esteja infectada. Trata-se de uma profunda suspensão do direito à liberdade, o qual, nos termos do art.o 27.o, n.o 3, h) da Constituição, apenas admite, em caso de doença, “o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente”.
No entanto, naturalmente que esta disposição não pode impedir o controlo efectivo destes casos de “confinamento compulsivo” pelos nossos tribunais. Efectivamente, o art.o 22.o, n.o 1, da lei 44/86, de 30 de Setembro, prevê expressamente que “com salvaguarda do que sobre esta matéria constar da declaração do estado de sítio ou do estado de emergência quanto aos direitos, liberdades e garantias cujo exercício tiver sido suspenso ou restringido, nos termos da Constituição e da presente lei, os tribunais comuns mantêm-se, na vigência daqueles estados, no pleno exercício das suas competências e funções”. O n.o 2 acrescenta que cabe aos tribunais “em especial, durante a mesma vigência, velar pela observância das normas constitucionais e legais que regem o estado de sítio e o estado de emergência”.
Outra medida altamente preocupante é a constante do art.o 4.o, n.o 3, b) do decreto 59-A/2020, que prevê que “pode ser limitada a possibilidade de cessação dos vínculos laborais dos trabalhadores dos serviços e estabelecimentos integrados no SNS”. Neste âmbito, o art.o 7.o, n.o 1 do decreto 9/2020 já estabeleceu que “durante o período de vigência do estado de emergência, suspende-se, temporária e excecionalmente, a possibilidade de fazer cessar os contratos de trabalho de profissionais de saúde vinculados aos serviços e estabelecimentos integrados no Serviço Nacional de Saúde (SNS), independentemente da natureza jurídica do vínculo, quer por iniciativa do empregador, quer por iniciativa do trabalhador, salvo situações excecionais devidamente fundamentadas e autorizadas pelo órgão dirigente”. O art.o 7.o, n.o 2 acrescenta que esta disposição “aplica-se, ainda, à cessação de contratos individuais de trabalho por revogação ou denúncia e a cessação de contratos de trabalho em funções públicas mediante extinção por acordo, denúncia ou exoneração, a pedido do trabalhador”.
Temos aqui agora uma suspensão total da liberdade de trabalho destes profissionais, garantida pelo art.o 47.o da Constituição, que curiosamente é publicada no Diário da República logo a seguir ao decreto do Presidente da República 59/2020, de 20 de Novembro, que ratifica o Protocolo à Convenção sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório, 1930, adoptado pela Conferência Internacional do Trabalho, na sua 103.a sessão, realizada em Genebra a 11 de Junho de 2014. É difícil maior contradição quando, na mesma altura em que se ratifica um instrumento internacional contra o trabalho forçado ou obrigatório, se determina o trabalho obrigatório a toda uma classe de profissionais.
A cada renovação do estado de emergência vamos assistindo à retirada progressiva dos direitos fundamentais dos cidadãos portugueses. Esperemos que a nossa Constituição não venha a ser maior vítima desta pandemia.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990