A pandemia adensou na sociedade portuguesa uma realidade e uma perceção de deslaço, de falta de coesão e de injustiça, que importa combater na segunda linha das prioridades logo depois das questões da saúde pública.
As opções políticas, por vezes erráticas, na gestão do surto pandémico; as propostas de alteração orçamental em função de interesses específicos – os nichos eleitorais de sempre – e a reconfiguração dos ritmos e modelos do quotidiano aprofundam linhas que vinham de trás em contradição com uma sociedade justa, coesa e com mínimos de previsibilidade.
É certo que estamos em contexto de emergência pandémica, em que nem sempre as narrativas políticas correspondem à realidade, há muitas variantes que não são controláveis, porque dependem de cada um, de todos e de dinâmicas internacionais e a volatilidade das convicções e da atualidade promove um aceleramento das vivências e das circunstâncias quantas vezes sem nexo, mas há uma perigosa deriva de deslaço, de injustiça e de incerteza que são demasiado perigosos para serem ignorados. São demasiado lesivos da confiança nas instituições e porto de abrigo dos populismos para poderem ser desvalorizados, mesmo num contexto de emergência e de um acelerado desespero político dos protagonistas pela sua sobrevivência.
A sobrevivência de quem está no poder, aliando-se à esquerda para o orçamento e à direita para a viabilização de um instrumento vital de abordagem à situação pandémica; a sobrevivência do maior partido da oposição enamorado pelo mesmo vale tudo que outros utilizaram para os afastar do poder; o restante contexto da antiga colaboração governativa e da oposição em busca de relevância e o populismo de circunstância, alimentado pelo exercício do poder, pelas circunstâncias e por modas adormecidas do tempo da outra senhora ou importadas. É este caldo de inusitado desespero que só pode dar disparate e dá mesmo, sobretudo na lógica da construção de uma sociedade plural, justa, coesa e com oportunidades sem cartas marcadas.
Há limitação e imprevisibilidade para todos, exceto num exercício presunçoso e arrogante do PCP em relação à realização de um evento partidário de grande concentração de pessoas, com total cobertura da Constituição e da lei, mas sem pingo de bom senso. Não deixa de ser caricato que quem apregoa tudo para todos, se açambarque a um exercício supremo de egoísmo face ao coletivo, aliás em total contradição com os direitos, liberdades e garantias tolerados pelos regimes que perfilham a ideologia autóctone, noutras latitudes.
Há limitação e imprevisibilidade para todos, exceto justamente em relação a alguns que, como pressuposto do vínculo laboral ao Estado, têm a maior das estabilidades em relação às modelações da vida, o funcionalismo público. Pode não ser atualizado há muito, pode não ter as adequadas progressões na carreira, pode até ser injusto para a função, como acontece em muitos casos na saúde, na educação e nas funções de soberania, mas há um acervo de rendimento que está sempre garantido. Já no privado…
Há limitação e imprevisibilidade em relação ao presente, mas sucedem-se anúncios de grandes objetivos a médio e longo prazo, uns porque são suporte ao programa de concretização da alegada bazuca financeira que se espera vinda de Bruxelas, outros porque, num contexto de crise, dificuldade e degradação económica e social, servem de alento popular para a esperança de melhores dias. Entretanto, o PCP, o BE, os Verdes e o PAN vão exercitando a margem de manobra reivindicativa que a atual liderança do PS gerou ao prescindir de outras possibilidades de viabilização do Orçamento de Estado, num quadro de emergência nacional. O problema deste tipo de leilão, em emergência e por sobrevivência política, é que favorece a ausência de rumo, de inteligibilidade e de previsibilidade, mas também a construção de uma sociedade dual.
Aos problemas estruturais do país (pobreza e exclusão social, assimetrias regionais e fragilidade da economia); aos abusos de posição dominante na política, nos negócios, na banca, nos media ou na justiça; e às circunstâncias da pandemia soma-se o suplemento de disparate dos cadernos de encargo dos negociantes, alguns com manifesto pessoa na consciência por, nos últimos 5 anos, terem tido outras prioridades e conivências com a viabilização da anterior solução governativa.
Estamos a combater um surto pandémico letal, em que os caminhos são cada vez mais estreitos, porque não se fez o que se devia e a realidade é exigente, pontuados por um ambiente de instabilidade, incerteza e limitação, que não precisam de impulsos que reforcem a segurança de uns, concretizem desejos segmentados marginais e aprofundem as razões para a falta de confiança nas instituições de quem não é contemplado, de quem não tem voz e de quem tem estado em mais de quatro décadas de democracia nas sobras das muitas concretizações alcançadas.
Portugal precisa de defesa do interesse geral, transparência e coesão, tudo o que o ambiente de desespero pela salvaguarda da sobrevivência política não permite. No entanto, não os acautelar, com padrões mínimos de previsibilidade, de justiça e de inteligibilidade pelos portugueses, é minar o que resta de confiança nas instituições. Um rastilho que nenhum democrata deveria querer, mas que o registo de “vale tudo” há muito inaugurado impõe.
NOTAS FINAIS
REPELÕES. A pandemia como qualquer emergência sublinha a importância do trabalho em rede e existência de rotinas em entidades públicas e privadas que, por regra, funcionam sob o registo de quintinha de alguém, de comarca de interesses ou território exclusivo. Num país com recursos limitados não há outra forma de responder às necessidades correntes e às situações de emergência. Quem governa deve dirimir e impor o interesse geral, não permitindo ações que são do domínio da excentricidade. A GNR gastou oito milhões e 400 mil euros para comprar uma lança de 35 metros destinada à fiscalização e prevenção criminal em alto mar, quando a Marinha só tem operacionais quatro das nove lanchas de fiscalização rápida.
SOLAVANCOS. O serviço postal universal apresenta muitas debilidades, sendo amiúde miserável. O que era o serviço regular de distribuição de correspondência passou a ser serviço de valor acrescentado – azul, verde e sabe-se lá mais o quê, a distribuição, em muitos territórios, é feita por quem não tem nenhum compromisso com a realidade, mas se é assim, imponham-se regras mais apertadas. Da mesma forma que nas prestações sociais em que existam abusos, o importante é a fiscalização atuar, nos CTT a solução, num quadro de tantas necessidades de investimento no país, não pode ser a de renacionalizar. A menos que seja para fazer agrados partidários.
Escreve à segunda-feira