Um ano difícil exige uma literatura ao seu nível. Ao mesmo tempo astuciosa, “intimista e entranhável”, como um vírus, sigiloso, capaz de roubar o fôlego, de interromper o curso dos acontecimentos, de nos devolver a uma postura mais digna e contemplativa. Precisamos de obras e autores difíceis. Assim o entendeu o júri do mais prestigiado galardão das letras espanholas, o Prémio Cervantes, que rompeu até com a tradição, uma regra não escrita que dita que este recaia a cada ano, de forma alternativa, em Espanha e na América Latina. Acontece que o vencedor da última edição foi outro poeta espanhol, Joan Margarit. E agora, o prémio insiste na poesia, num poeta valenciano, de 88 anos, Francisco Brines, “o mais secreto dos verdadeiramente grandes”, notou Felipe Benítez Reyes, também poeta e romancista. Ao celebrar Brines, o júri insiste ainda, pelo terceiro ano consecutivo, em reivindicar a poesia, em deixar a narrativa e, particularmente, as ficções para um segundo plano, valorizando assim “um dizer que interrompe a cadeia da representação, afirmando a singularidade da existência, o irrepetível, que é uma questão de ritmo” (Silvina Rodrigues Lopes). Antes destes dois últimos poetas espanhóis, a anterior galardoada foi a poeta uruguaia Ida Vitale. É uma mensagem clara de que a poesia, mesmo se em condições de desigualdade, mesmo se avessa aos dictames do mercado, tem sobrevivido, porque, no fim, como sinalizou Hofmannstal, “o mais corajoso e o mais forte é aquele que é capaz de colocar as suas palavras com a maior liberdade”, e, desde logo, revela maior sagacidade o criador que se afirma pela capacidade de dizer as palavras não apenas duras, como inesperadas, “porque nada é tão difícil como arrancá-las às suas associações falsas e resistentes”.
Deste modo, o júri do Prémio Cervantes insurge-se contra uma tendência para a subsunção da vida literária, essa que é festejada na maioria das revistas e jornais, ou nas televisões, precisamente porque tudo aquilo que conta apenas reafirma o já previsto, ecoa o que já aconteceu. Este júri quis assim, de forma enfática, contrariar a exuberância inócua da mesmidade, preferindo celebrar um poeta muitíssimo discreto, um “explorador vagaroso mas incansável de um mundo interior singularmente diferenciado”, nas palavras do crítico José Olivio Jiménez. O próprio ministro da Cultura espanhol, José Manuel Rodríguez Uribes, ao justificar a decisão do júri disse que o galardão foi atribuído “a uma obra poética que vai do carnal e puramente humano ao metafísico e espiritual, guiado por uma aspiração de beleza e imortalidade”. O ministro aludiu ainda à geração de 50, na qual Brines, que nasceu em 1932, em Oliva, veio a integrar-se, mas não sem algumas revisões e aclarações, uma vez que o seu livro de estreia surge apenas em 1960, sendo mais tardio que os dos seus coetâneos, um bando de formidáveis poetas que conta com nomes como Ángel González, José Manuel Caballero Bonald, Jaime Gil de Biedma, José Ángel Valente e Claudio Rodríguez. E o crítico Ángel L. Prieto de Paula nota que, face ao realismo crítico dominante que caracterizou alguns dos poetas que primeiro assumiram a dianteira daquela geração do pós-guerra civil (1936-1939), o aspecto sensualista e elegíaco da poesia de Brines fez dele um caso um tanto aparte, que exigia sempre uma atenção especial, sendo um poeta que busca assumidamente a “raiz tenebrosa da vida”, carregando os seus versos, nas palavras de Olivio Jiménez, não só de uma “fragrante sensorialidade”, mas também de “uma impecável (e implacável) lucidez reflexiva”. Prieto de Paula adianta que, embora haja um tom confessional na sua obra, “os aspectos biográficos esbatem-se alegoricamente ou são transcendidos numa construção simbólica, ou numa proposta reflexiva que adopta uma certa formulação moral, dentro de uma ordem epicúria ou, sem entrar em maiores precisões, ‘pagã’.
Com uma obra bastante breve, no último quarto de século Brines tem observado um mutismo severíssimo, só quebrado por uns poucos poemas que vão surgindo em antologias ou revistas e que lhe bastam como sinais para lembrar os seus poucos mas apaixonados leitores de que o poeta continua a trabalhar naquele que será o seu derradeiro título, “Donde muere la muerte”. Entre nós, mais do que um fidelíssimo leitor, José Bento foi um cúmplice, e conseguiu que fosse publicada, em 1987, uma esplendorosa antologia da sua obra (1960-1986) “Ensaio de uma despedida”, seguida, uma década depois, pelo fulgurante “A Última Costa”, que saiu em Espanha em 1995. Detenha-mo-nos, a título de exemplo, no breve poema “A Piedade do Tempo”, o qual serve como uma condensação radiante desta melodia que, rastejando, nos cerca e atravessa, alimentando-se da pele de velhas memórias, para nos sugerir de novo a ascensção à carne de momentos que ficam como o mais intenso resumo do que foi a vida, essa de que um dia nos custará tanto a despedirmo-nos: “Em que escuro recanto do tempo que morreu/ vivem ainda,/ a arder, aquelas coxas?/ Dão luz ainda/ a estes olhos tão velhos e enganados,/ que voltam agora a ser o milagre que foram:/ desejo de uma carne, e a alegria/ do que não se nega.// A vida é o naufrágio de uma obstinada imagem/ que já nunca saberemos se existiu,/ pois só pertence a um lugar extinto.”
Depois de receber a chamada do ministro, a comunicar-lhe que tinha ganho o prémio, segundo Brines, a primeira coisa em que pensou foi na sua mãe. “pensei que ela ficaria muito contente, que isto lhe teria dado uma imensa alegria, porque quando lhe disse que queria ser poeta, mesmo achando que eu não ia pelo melhor caminho, deixou-me ir, apoiou-me. E parece que, afinal, as coisas até se compuseram”.
Filho de empresários exportadores de laranjas, numa entrevista ao jornal catalão “La Vanguardia”, Brines lembrou quando disse aos pais naquela mesma casa, aonde regressaria décadas depois para envelhecer pacatamente, que queria ser poeta, e que embora isso fosse uma vocação de um mundo que lhes era completamente alheio, apesar das muitas dúvidas, a atitude que tiveram foi a mais respeitosa. Assim, hoje, o primeiro valenciano a receber o Cervantes, evoca os pais e a infância que lhe deram naquela casa cercada de laranjeiras, com vista para o mar e para o Maciço de Montgó, uma casa que, há alguns anos, se tornou a sede da fundação com o seu nome, e que tem ao dispor dos visitantes uma biblioteca com mais de 30 mil livros, e que, em breve, irá conceder anualmente dois prémios de poesia, um a uma obra em valenciano e o outro a uma obra em castelhano.
Nas entrevistas que deu a seguir ao anúncio do prémio, vários jornalistas notaram que apesar de a sua voz quase espectral e quebrada por um catarro que ainda se arrasta deixar claro a delicadeza do seu estado de saúde, em certos momentos, havia ainda impulsos de grandeza, rasgos poderosos. O jornalista do “La Vanguardia” perguntou-lhe qual é a função da poesia neste século XXI, e ele respondeu: “A mesma função que tem desde sempre, que é falar a partir da cegueira do poeta, esse ser que se move por intuição. A intuição é cega mas é, ao mesmo tempo, imensamente certeira naquilo que diz, e é essa a dualidade da poesia, o seu mistério maior e mais emocionante: ‘como pode ver tanto o poeta se é cego?” O tema da pandemia, naturalmente, também veio à baila, e Brines insistiu que, face a ela, “a poesia é mais que nunca um refúgio”. E adiantou que “amar e ser amado é o máximo que podemos esperar deste mundo. E os que tiverem vivido podem dar graças a Deus por isso.”
É uma mensagem bem mais esperançosa de um poeta que, quando se estreou, há 60 anos, com “Las brasas”, embora fosse muito jovem, tinha já muito firme a sua obsessão com o desfecho, e procurando aclarar o título desse seu primeiro livro, explicou que as brasas é “o que arde sem chamas, em processo de extinção”. Viria a defender que “insistir na vida quer dizer, poeticamente, voltar a narrá-la”, mas, como lembraria José Olivio Jiménez no prólogo da antologia de Brines publicada entre nós pela Assírio & Alvim, desde a primeira hora este poeta sempre se manteve fiel a um conjunto de verdades últimas, a um “canto profundamente elegíaco, em que, ao mesmo tempo, o homem se empenha em afirmar a sua débil realidade e a formosura do mundo e da vida”. Certa vez, o poeta escreveu: “Ao homem, por vezes, dói-lhe essa sombra que desconhece, e que está dentro dele. Sabe então o quão pobre é o corpo como sustento./ Ama essa carne e a sua sombra, porque é isso a que chama vida. E ama também o sopro que o fará desfazer-se para sempre, porque não existe outro destino.”
Aos 88 anos, nas declarações que fez ao “La Vanguardia”, Brines fez questão de frisar que, para ele, “uma das coisas mais importante que me deu a poesia foram as amizades, e o que fiz foi vertebrá-las através dela”.
Depois de uma licenciatura em Direito, Francisco Brines virou-se para a Filosofia e as Letras. Durante uns anos foi leitor de literatura espanhola na Universidade Cambridge, depois deu aulas como professor de espanhol na Universidade de Oxford, e, cada um dos seus livros foi obtendo grandes distinções, desde “Las brasas”, que ganhou o Prémio Adonais, ou o segundo, “Palabras en la Oscuridad, em 1966, que lhe valeu o Prémio da Crítica Nacional. Em 1987, recebeu o Prémio Nacional de Literatura pela publicação do “El Otono de las Rosas”, no ano anterior, um dos seus livros mais famosos e populares, composto por sessenta poemas escritos ao longo de dez anos. Em 1999, recebeu o Prémio Nacional das Letras Espanholas por toda a sua obra poética e, em 2000, foi eleito membro da Academia Real das Línguas de Espanha.
Hoje, este poeta que foi sempre descrito por todos como um personagem afável, cordial, próximo, com uma expressão calorosa e nobre, e sempre enamorado da vida, quase faz esquecer a dimensão ao mesmo tempo tão dolorosa da vida, a tristeza, esse lado fantasmal da realidade que convive com a exaltação da beleza e do que há de luminoso. Cinco anos depois do seu primeiro livro, em “El Santo Inocente”, deixava-nos esta desolada definição da experiência humana: “O homem é esta carne murcha e negra,/ uma débil razão e um sentimento frágil”. Olivio Jiménez sublinha que a vida é entendida ali como uma derrota, e exprime-o através desta impugnação radical: “Se Deus existe, assumirá o fracasso.” Noutros versos, de um outro livro, dirá: “Apenas um poderoso cadáver que sonhasse/ nos poderia criar desta maneira.”
A propósito do título do seu segundo livro, “Palabras a la oscuridad”, Brines explicava que essas são “as palavras que, exprimindo o homem que é o poeta, vivem a apagar-se, a extinguir-se…” Mas se estão destinadas à escuridão, ao nada, o poeta espanta-se ao dar-se conta de como “a vida morde ainda”. A partir de um livro como “Aún no”, a crítica, e nomeadamente o seu grande amigo Carlos Bousoño, define o particular alcance estético destes versos, cada vez mais apurados, cingidos, num fascínio produzido pela rarefacção, que criam um ambiente poético e uma dicção bastante incisivos, chamando-lhe o efeito de uma “beleza por exactidão”. E Olivio Jiménez esclarece que se trata da capacidade para “sugerir com a mais assombrosa exactidão as mais insólitas sensações e percepções da consciência”. Na “crua radiografia” que se projecta na sua obra, Jiménez elege aquele livro como o momento de inflexão em que se agudiza uma individualidade absoluta mas com uma entoação que lhe dá universalidade, estando presentes ali, mas agora de forma mais descarnada, todos os substratos da sua poesia: “a indigência do ser, o vazio do real, a glória e o fracasso da vida humana”.
Para terminar, vale a pena destacar um dos poemas mais expressivos e esclarecedores da relação de Brines com a poesia. Chama-se “O porquê das palavras”, e encerra o livro “Insistencias en Luzbel” (1977): “Não tive amor às palavras;/ se as usei com nudez, se sofri nessa busca,/ foi porque precisei de não perder a vida,/ e envelhecer com um pouco de memória/ e alguma claridade.// Assim uni as palavras para queimar a noite,/ fazer um falso dia belo,/ e pude conhecer que era a solidão o centro deste mundo (…) Não tive amor às palavras./ Como ter amor a uns vagos signos/ cujo desvelo era somente/ despertar a piedade do homem para consigo mesmo? (…) As palavras separam das coisas/ a luz que nelas cai e a casca extinta;/ e recolhem os véus da sombra/ na noite e nos vazios;/ mas não souberam separar a lágrima e o riso,/ pois eram uma única verdade (…) Olhai o sigiloso ladrão das palavras,/ arrasta-se na noite fosca,/ abre sua boca seca, e está mudo.”