Os autos enunciam o cansaço como razão para o relaxamento, displicência e balda no cumprimento das regras básicas de proteção perante o risco de contágio pela covid-19, apesar das comunicações oficiais colocarem o foco no comportamento exemplar dos portugueses. Exemplar, mas com demasiadas projeções negativas no andamento dos surtos, por responsabilidades próprias ou por força das circunstâncias. Afinal, não tão exemplar como dizem, sob o ponto de vista factual. Talvez em sintonia com a prestação dos titulares de cargos públicos com responsabilidades nos processos de decisão nacional. Uns porque falam demais, outros porque fazem a menos ou simplesmente porque não tendo capacidade de visão, decisão e concretização em tempo normal, ainda menos teriam num contexto de emergência.
Ninguém diz que o exercício é fácil. É singular e exigente, não contando nem com uma cultura cívica apurada, nem com político e responsáveis com sentido prático da realidade face ao risco. Como se vê por outros países, provavelmente mais civismo e mais capacidade política de concretização não resolveria, mas ajudava e muito a não haver tanto cansaço.
Não haveria cansaço se a cultura cívica ou a falta dela não navegasse no supérfluo, materialista e volátil contexto das nossas sociedades, em que somos formatados desde a escola para debitar em vez de raciocinar, exigir e ir mais além no conhecimento, no que dizemos e no que pensamos. As expressões maiores das conversas nas redes sociais como outrora no café ou na rua do bairro, dos comentários nos jornais online ou do amorfismo perante tantas realidades inaceitáveis, mentiras e meias verdades, do alegado esforço de informação às narrativas do poder, são reflexos dessa falta de exercício do posicionamento cívico individual e comunitário. O mesmo que permitiu anos de Salazar e permite o medrar dos populismos e outros ismos latentes.
Não haveria cansaço se o exercício dos eleitos para os eleitores não fosse marcado pelo imediatismo, pela incapacidade de gerir além da circunstância, com visão, coerência, transparência, explicação e avaliação, em vez do empastelamento a que estamos a assistir, sem critérios inteligíveis. Se o Serviço Nacional de Saúde estivesse nas preocupações de anteriores governos como pilar essência de respostas às necessidades correntes e aos cenários de emergência, em vez dos picos de exibicionismo político-eleitoral, das idolatrias da austeridade ou das respostas aos nichos eleitorais da anterior solução de governo de esquerda, os buracos no queijo não eram tão evidentes. E já no atual contexto, com maior ou menor previsibilidade da segunda vaga, era certo que viria e a prontidão era vital. Entre as narrativas cor-de-rosa do primeiro-ministro e do Presidente da República e a realidade vai, em várias áreas, uma enorme distância, a mesma que existe entre a conversa das oposições e as responsabilidades destas neste e em anteriores contextos. O que temos é a soma de vários contributos por ação e por omissão.
Não haveria cansaço que já não cansasse o que nos é dito, na forma como nos é dito e orientada para os objetivos que nos são comunicados. É para salvar o Natal, deve ser para salvar vidas. É para ajudar os profissionais de saúde, deve ser para garantir que, se por alguma circunstância fortuita apanhar o vírus, há capacidade de resposta do sistema de saúde. Não podemos voltar a ter um confinamento geral, devia ser, se não fizermos mais fecha tudo, custe o que custar.
Com alguma probabilidade teremos ultrapassado o meio desta tormenta, enquanto surto pandémico sem vacina, portanto faltam ainda muitos meses sob condicionamento e muitos mais para os efeitos diretos e indiretos na economia e na vida concreta das pessoas e dos territórios. Provavelmente o nível de contágio, dos casos, das mortes e dos internamentos vão continuar a aumentar, num quadro em que o vírus e as situações concretas se vão acercar cada vez mais das pessoas.
O Presidente da República, o Governo e as autoridades de saúde falharam na vacinação da gripe. Criaram uma expetativa de abundância e disponibilidade, que gerou interesse de um maior número de pessoas, porque se induziu o risco da conjugação da gripe com a covid-19, e depois conclui-se que não há vacinas para todos. Se as variantes não estavam asseguradas porque razão foram perentórios na afirmação das vacinas para todos? Impreparação ou incompetência.
Há cansaço das limitações, da sua falta de coerência e da frequente ausência de explicação do sentido do que é positivo e do que é negativo, numa espécie de afirmação de uma comunicação para súbitos, ao invés de uma interação com os cidadãos.
Por mim o cansaço maior é com os que puderam ter feito e não fizeram ou que fizeram sem acautelar o que estavam a gerar em termos de interrupção da normalidade das práticas constitucionais e políticas, dos impactos da falta de critério na decisão e na ação política e da geração de campos de pasto para os populismos e outros ismos presentes na sociedade portuguesa. Esse contágio da anterior solução política de governo e de anos de governação sem critério, com maior ou menor visão para o país, gerou e gera o cansaço mais perigoso, o cansaço democrático. Bem podem queixar-se do Chega e dos amores perdidos de Rui Rio pelo pragmatismo sem princípios, é a colheita do cansaço que tiveram em relação às tradições político-parlamentares, aos princípios e aos valores. Os Açores são só o princípio do que aí vem nas autárquicas, nas europeias e nas legislativas seguintes. São tudo expressões dos cansaços com os cansaços do taticismo político, do vale tudo, da promiscuidade entre a política e os negócios, das desigualdades, das injustiças, do abandono de parte do território, da pobreza, da exclusão social, de quem no concreto põe o país a funcionar e de tantas outras marcas que refletem a nossa dimensão cívica e política.
Em muito, somos um povo e um território excecional. Haverá cansaço do cansaço, mas se é necessário fazer, conter e precaver com o uso da máscara, o distanciamento social, a etiqueta respiratória e a lavagem/desinfeção frequente das mãos, faça-se. Assim faça, também quem governa. Clareza, explicação, capacidade de concretização e de reação real. Mais ação e menos conversa.
NOTA FINAL
TRAMPOLINISMO PRESIDENCIAL. Estando o PS a colher o que semeou na República, o Presidente e o representante da República atalharam os passos constitucionais da formação do governo dos Açores. Seguiram precedentes, abriram precedentes, estão na fotografia do vale tudo. Aliar-se ao Chega não é comparável com as alianças com o PCP e BE. Uma coisa é racismo e xenofobia para o território nacional, outras é o apego a regimes totalitários noutras latitudes, sem projeções políticas reais na vida do país.
Escreve à segunda-feira