Manuel Gusmão no seu brilhante prefácio escreveu (p.19) «Ao mesmo tempo híbrida e fortemente coerente é, assim uma obra irredutivelmente estranha: divertimento e exercício de intensa irrisão, jogando soberbamente a liberdade do jogo e algo inquietante.»
Depois de lido o prefácio, como que com uma bengala, o leitor seguirá bastante mais seguro e confortado na aventura extasiante dos sessenta e sete textos que se adivinham febris. Na verdade, são sessenta e sete narrativas que nada têm de cancioneiro, de policial ou de menina.
O narrador expõe os seus curtos textos, todos no pretérito, como se a vida se passasse no pretérito, irredutível, irremediável, num lugar onde nada restasse fazer. Como se a vida já se tivesse passado. Lemos no fim da última página «Morreram na dúvida.» E é na dúvida que o leitor também se vai precipitando no livro, na dúvida e na estupefação.
O que Manuel Gusmão no seu prefácio apelidou de híbrido, também poderá ser apelidado de Morse, da mesma maneira que, de inquietante, se poderia apelidar de desatino, porque este nunca será o livro que o leitor lê. Este é um livro múltiplo, bizarro, indefinido, fugidio, atroz.
São muitos os ambientes. A casa, a praia, o grémio, a embaixada, a central. São muitos os personagens. O inspetor, a mulher, a sogra, a mulher do cirurgião, o porteiro, o seminarista, o diplomata, a governanta, os americanos, o secretário do secretário, agrários, o perito, o encarregado de negócios, a script-girl, a irmã do fotógrafo, o Cardeal, o piloto, outros mais e por fim, mas não por último, Alzira. Mas afinal (p.14) «quem é a menina Alzira?» pergunta a certa altura o inspetor, ao que o porteiro responde «Não sei quem é a menina Alzira.» (…) A menina Alzira e o porteiro eram a mesma pessoa.» ou (p.78) «Alzira não estava. Alzira não era.»
A par de não se saber quem é a menina Alzira, não se sabe nunca a quantas se anda, porque não é possível situar a história numa cronologia temporal precisa. Só a uma página do fim, somos remetidos para Abril. Ora, Abril será sempre Abril, mas a ação continua a parecer que se passa apenas e só enquanto a sogra deita as crianças. Desde o início que «A sogra já tinha deitado os petizes», passando pelo meio da história (p.62) «A sogra é que os ia deitando», para no fim continuar (p.64) «A sogra não estava. Sinal que os petizes dormiam.» / (p.103) «Eram gémeos esses petizes. Na presença, a sogra deitou-os.»
Esta imprecisão temporal é como se fosse uma nuvem esquizofrénica carregada de delírio a pairar sobre este descancioneiro. (p.68) «O inspetor chegou a casa. Saiu. A sogra saiu. O inspetor levantou-se. Ia ver os petizes. A sogra voltava. O inspetor nunca os vira. Teve sono. Deitou-se da janela abaixo. Era baixo. Subiu. A sogra marcava o compasso. Foi ir deitando os petizes.» ou ainda, como podemos ler no antepenúltimo texto (p.110) «O inspetor deserdara os petizes a orar, dizia a sogra, nesse sótão onde os ia deitando.» Este gerúndio no fim da frase serve como um infinito perpetuar da ação, um infinito país vigiado, encoberto, perfilhado por batinas e profecias com mantilha em frente a muitos altares sombrios.
Só nos vamos dando conta que o tempo se vai desenrolando quando a certa altura lemos (p.67) «A mulher envelheceu».
Mas afinal, qual foi a mulher que envelheceu? A mulher, a sogra, a mãe, a mãe da sogra? São mulheres muito próximas umas das outras, e distantes ao mesmo tempo, porque as vemos descolarem-se a cada passo pela troça, escárnio, violência e principalmente através de pensamentos insólitos (p.94) «”A mãe” acrescentava, “era rameira desposada, criada de quarto da madrasta”, solfejando: ”A peixe de mama, não se olha a escama” ou como era? O certo, tivera para os efeitos, uma ama de peixes, mais reticente nas aves, mais reticente nas aves nem sempre. Dava-lhes o peito. Foi perdendo os bicos mordidos. Era a tia, irmã da mãe no sangue e meretrício. Um dia caiu para o lado. O lado eram os peixes. Foi muito devorada pela noite.»
Como é que seria possível depois de ler esta passagem, não imediatamente recordarmos A Mulher que Matou os Peixes de Clarice Lispector ou Adília Lopes e a sua Arte Poética? (Um Jogo Bastante Perigoso) «Escrever um poema/ é como apanhar um peixe/ com as mãos/ nunca pesquei assim um peixe/ mas posso falar assim/ sei que nem tudo o que vem às mãos é peixe/ o peixe debate-se/ tenta escapar-se/escapa-se/ eu persisto/ luto corpo a corpo com o peixe/ ou morremos os dois/ tenho de estar atenta/ tenho medo de não chegar ao fim/ é uma questão de vida ou de morte/ quando chego ao fim/ descubro que precisei de apanhar o peixe para me livrar do peixe/ livro-me do peixe com o alívio que não sei dizer.»
O insólito acaba por ser em Luís de Sousa Costa essa espécie de alívio de que Adília Lopes, que, entretanto, tinha sido sua aluna na Faculdade de Letras de Lisboa nos descreve no seu poema. E é também precisamente esse insólito que acabará por forrar o tutano deste livro. Um tutano recôndito, violento, soldado em jogos lexicais caricatos (p.93) «Mais valem todos a voar, que uma mão cheia de pássaros na mão.»
Esta inversão de sentidos dos ditados populares confere ao livro uma espécie de contextura tirânica prodigiosa. É que é nestes jogos gramaticais que Luís de Sousa Costa obriga o leitor a desconstruir com ironia, sarcasmo, troça uma série de pressupostos, que como sanguessugas o consomem. E depois de desconstruído todo o puzzle incontinente e desencadeado de ideias, ações, trocadilhos, o leitor sentir-se-á em convalescença, porque na realidade esta é uma obra que contempla e perscruta as mais invisíveis células, a carcaça da carcaça. O insólito e o desarmar da linguagem consagrada conferem um estatuto pleno de liberdade à obra capaz de permitir sem pudores escrutiná-la, esfarrapá-la para depois a asfaltar com soberba descontinuidade, movimento, humor, paradoxo. (p.78) «Não há, às vezes, por necessidade, isso? Apertar as gargantas renitentes? Já não se podia brincar sequer com a língua da mãe, sendo puta estatuída? Alguém quis desses jogos.»
Este apertar de gargantas é talvez a principal acrobacia destes textos corrosivos e acrimoniosos. O paradoxo e a incoerência aliados ao fato de todos serem muitíssimo circulares fazem com que vejamos os personagens deambularem aos nossos olhos como se fossem um por um, enfiados num mesmo uniforme, um uniforme em contrassenso. Um uniforme sacudido, desordeiro, mas natural, pronto a chocar e a ferir, porque esse uniforme por catalogar é a palavra, porque só (p.88) «A palavra matava.»
Esta violência e circularidade pautada em toda a presente obra faz com que o leitor se confunda nas relações entre as próprias personagens, mas isso é que é o suposto, que o leitor se confunda. Na maioria das vezes o leitor vai descortinar o perfil de certos lugares em outros, como também, de certas personagens em outras ou nelas próprias, senão vejamos (p.33) «Era a script-girl vestida de sogra.»; «A mulher perguntou à sogra pelos petizes. A sogra perguntou à mulher pelo inspetor.»; (p.93) «O inspetor ia no roupão da sogra. Intimidades na manhã pouco alta. O garoto não foi. Ficou sozinho no outro roupão da sogra.»; (p.90) «O turista era o porteiro vestido de chauffer.»
Mas se no calcorrear dos sessenta e sete textos há uma circularidade compacta e assustadora, por outro lado também há a negação da mesma, (p.69) «A mãe também não era a filha. O inspetor seria mesmo o inspetor?» E agora a pergunta derradeira, o leitor será o mesmo leitor depois de ter lido este livro? E com que olhos lerá este Cancioneiro Policial da Menina Alzira? Com surpresa certamente.