Artur Portela Filho. Um jornalista que emanava luz própria

Artur Portela Filho. Um jornalista que emanava luz própria


Morreu aos 83 anos, em Abrantes, vítima da covid-19, um dos mais prodigiosos jornalistas portugueses. Marcelo Rebelo de Sousa elogiou o antigo colega pelas suas qualidades enquanto guia nos “anos de transição entre regimes, bem como nas vicissitudes da jovem democracia”.


O país nem se desculpa da memória de peixe, afunda-se sem se dar conta, sentindo os miolos levantar voo de alegria. E dizendo adeus à memória, segue-se a decência de saber quando a hora lhe exige que se feche em luto. Mas lê-se tão pouco, tão mal que nem para ler as horas vai dando. E a vida que houve nas redações, nos jornais, diz cada vez menos a quem se contenta com a ração da imbecilidade da informação que se cinge praticamente a notificações e às espinhas que não dão do mar grande ideia, distribuídas sem cunho nem crivo pelas redes que nos cingem neste regime da confusão geral. Assim, a morte de uma figura decisiva do jornalismo português nem foi bem uma notícia. Foi outra baixa incerta nesta pandemia sensaborona. Artur Portela Filho, romancista também, tradutor e publicitário, morreu aos 83 anos, vítima da covid-19. Hospitalizado em Abrantes, foi-lhe diagnosticada uma pneumonia a que não resistiu.

Desta vez, coube ao próprio Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, valer-se daquele rasgo atrevido dos linguados de prosa que davam pulsação à vida diária para falar do “seu colega de lides jornalísticas, seu amigo e, às vezes, seu alvo”, caracterizando-o como “alegórico, sarcástico, paródico, barroco”. Acrescentou ainda numa nota publicada no site oficial da Presidência que “o Artur Portela cronista é ainda hoje um dos melhores e mais truculentos guias dos anos de transição entre regimes, bem como das vicissitudes da jovem democracia, comentando a atualidade de forma mais empenhada do que na ironia distante que identificamos com o queirosianismo”.

Marcelo sublinhou ainda que “os seus contos e novelas constituíram uma tentativa portuguesa de diálogo com o nouveau roman francês (…). Mas foi como jornalista, colaborador de vários jornais, diretor do Jornal Novo e da revista Opção, e sobretudo como cronista, que se notabilizou”. Já o seu antecessor, Jorge Sampaio, assinara uma nota, em novembro de 1976, no 5.o volume de A Funda, a edição em livro das crónicas políticas que Artur Portela publicou, ao longo dos anos, nos diversos jornais em que colaborou, e ali elogiava-lhe aquele exercício, que se distinguia por uma “eficiente acutilância, que vai saudavelmente demolindo as pseudopersonalidades, os prestígios formais e de cúpula, as vaidades provincianas na cidade, os esquemas e as clássicas influências de campanário”. Sampaio sublinhava ainda que “estando, como de costume, em cima dos factos, o 25 de Abril veio permitir a Artur Portela alicerçar as suas análises, e agora às claras, sem mordaças que vitimaram tantos dos seus escritos, numa perspetiva de esquerda que dia a dia se torna mais evidente e acessível. Portela representa assim um poderoso instrumento de classificação e esclarecimento político e social”.

Nascido em 1937 numa família de escritores e jornalistas, herdou do pai o nome, Artur Portela, e, por isso, para o distinguirem, acrescentou o Filho. Formou-se em História, mas não tardou a exigir a sua iniciação nos jornais. Era talvez o único registo em que, da véspera para o dia seguinte, a sombra de um homem podia intrometer-se nas coisas; as obsessões e o apuro da linguagem, mesmo nas entrelinhas, podiam provocar irritações na pele da alma. E terá sentido como tantos o apelo do mundo das redações, esse ambiente “povoado de seres misteriosíssimos”, diz Nelson Rodrigues. Num negativo dos nossos dias, em que nas águas da liberdade bastou deitar mais detergente, nos tempos em que as inteligências mais fulgurantes eram obrigadas a ensaiar os seus golpes na clandestinidade das meias-palavras, reconhecia-se nalguns jornais “uma paisagem fascinante e espetral como se os redatores, mesas, cadeiras e contínuos fossem seres submarinos”, diz o cronista brasileiro. “Há peixes azuis, escamas cintilantes, águas jamais sonhadas. De vez em quando sai de uma caverna um monstro de movimentos lerdos e pacientes. E passa um peixe sem olhos, que emana uma luz própria”.

Uma vez que os jornais se aliviaram dos melhores espíritos que aquela escola produziu, não espanta que o único obituário digno desse nome – na verdade, um texto notabilíssimo -, não se acoitando no tímido exercício de elencar os títulos por onde Artur Portela passou e aqueles que assinou, apareceu num blogue, assinado pelo jornalista Gonçalo Pereira Rosa. Ali nos diz como Portela entrou de bibe na redação do Diário de Lisboa, que foi o prolongamento da escola que frequentava, ao fundo da Rua Luz Soriano. “Era o Arturzinho, o filho de Artur Portela, cronista jactante das artes e letras desde a fundação do jornal. Esse rótulo aborrecia-o. Para muitos, um apelido famoso seria uma bênção, um abre-latas de oportunidades. Para Artur Portela Filho, implicou durante décadas o ónus da comparação”.

A atitude honesta perante o texto de Pereira Rosa nem é citar uns bocados, mas pedir ao leitor que o leia na íntegra. Chama-se “Portela, um gigante contrariado”. Entre episódios absorventes e bastante esclarecedores, num exemplo de testemunho raro que exige convivência, atenção, generosidade, o jornalista diz-nos que “nas redações por onde passou, [Portela] recolhia admiração e ódio. Bastava uma crónica para se perceber que estava ali um pequeno génio. Dominava a língua e as figuras de estilo como poucos. Fez-se cronista ímpar, talvez o melhor do século – o que não é pouco. Mas zombava dos que não conseguiam escrever como ele. Tinha uma altivez irritante ao primeiro contacto”.

É mais do que uma homenagem porque traça um retrato honesto, profundo, cheio das dimensões que tornam palpável um caráter corajoso e complexo, o de um homem que deu muito ao jornalismo, “um jornalista que criou o seu próprio carril, que mais nenhuma locomotiva conseguiria trilhar”, mas que acabou por “institucionalizar-se” e por “entrar no mundo da publicidade e do dinheiro”, no início dos anos 1970. Ainda fundou o Jornal Novo onde, “durante meses, foi o cronista mais lido e respeitado do país”, seguiu-se a revista Opção, mas, depois, “a sua intervenção pública passou a ser feita através de livros-entrevista (maravilhoso o volume com José Cardoso Pires) e da ficção (nem sempre bem recebida pela crítica)”. No fim, fica a sensação de que é um dos perfis que se destacam entre os vencidos do jornalismo, um desses que se deu conta a tempo do naufrágio e se pôs a salvo, saltou borda fora, para não ir ao fundo e ver os seus últimos esforços e o próprio corpo entregue como comida a estes peixinhos de aquário.