Vivemos um período difícil, um período diferente de quase todos os outros por que passámos recentemente.
Nele domina a questão da pandemia, mas não apenas esta.
Muitos são os que sobre este período difícil tecem e dão opiniões: opiniões políticas, opiniões científicas, opiniões morais e até culturais, opiniões, enfim.
As circunstâncias do momento evoluem, porém, depressa e nada parece duradouro e seguro.
Por isso, muitas dessas opiniões – se opiniões lhes podemos chamar, pois algumas carecem de algum fundamento racional – são rapidamente contraditadas e remetidas ao esquecimento.
É, pois, um momento propício à desinformação e à demagogia.
Pode ser, ainda assim, sobretudo, um momento de unidade favorável à realização do bem comum.
Tem de o ser. É imperativo que o seja.
Durante a primeira fase da pandemia todos fomos capazes, de certa maneira, de encontrar formas de exprimir essa unidade e de projetar o bem comum para primeiro plano: a maior parte das atitudes políticas e sociais das forças mais influentes na nossa sociedade souberam fazê-lo bem e sem perder a face ou escamotear os ideais e interesses que sempre as orientaram.
Claro está que tais interesses e ideais não coincidiam então, nem tão pouco coincidem hoje; nem é isso que se esperava, ou espera.
Porém, a necessidade de preservar os laços essenciais que nos permitem pensar como uma nação soberana, com características históricas, culturais e económicas próprias, foi suficiente para todos, ou quase, fazer convergir na eleição do Estado como instrumento democrático e privilegiado de apoio à maioria dos cidadãos.
Até os mais liberais se vergaram à evidência das coisas, à necessidade da intervenção do Estado em áreas muito alargadas da economia e da vida quotidiana dos cidadãos.
Tal atitude de convergência tinha como primeira preocupação a salvaguarda da saúde e a da vida de todos e, não menos importante, como segunda preocupação, a defesa do trabalho e dos setores essenciais da economia, condições básicas para assegurar os cuidados sanitários exigidos.
Hoje, o cansaço provocado pelo agravamento da situação, o medo gerado pela inexistência de uma perspetiva acessível e imediata para conter e debelar a pandemia, começaram a gerar fenómenos de insatisfação social, de alguma raiva mal contida e, consequentemente, de algum nervosismo e desorientação política.
A vida de muita gente deteriorou-se gravemente em todos os sentidos e campos: na saúde, no trabalho, nos negócios, na escola, nos transportes, na família, enfim na realização da vida de cada um, encarada esta como um conjunto coerente de ação individual e coletiva, relacionamento social, amores, alegrias e tristezas.
O clima que se está a gerar é, por isso, perigoso e pode motivar reações sociais imprevistas e desenquadradas de qualquer objetivo definido: reações que podem ir da desobediência civil simples ao desespero e à violência.
Nestas circunstâncias, haverá sempre quem se queira aproveitar politicamente desse clima; quem o deseje e o provoque até.
Isso só não terá consequências graves se as forças políticas e sociais do arco constitucional não condescenderem – como se começa a ver que pode acontecer– com ideais e comportamentos antidemocráticos, oportunistas e perigosos.
A unidade em torno do bem comum tem de assentar, pois, na defesa da Constituição e na plataforma política, jurídica, social e económica que ela estabelece. Ela é a verdadeira plataforma comum da nossa coexistência democrática e, assim, também, a fronteira que deve ser afirmada e defendida em todas as circunstâncias.
Fora dela, só pode haver lugar ao acentuar das injustiças gritantes – ainda existentes – e ao retrocesso na base dos direitos políticos, sociais e económicos que orientam, no essencial, a vida cívica do nosso país, desde a construção da democracia.
Se todos os que se reveem na Constituição conseguirem, portanto, ir adotando medidas com ela conformes, que não só assegurem a decência da vida presente da maioria dos portugueses, mas sirvam já de miradouro para um futuro mais solidário e justo, o oportunismo reacionário e violento não terá sucesso.
Necessário, para isso, é que todos saibam distinguir o essencial do acessório e que todas as forças morais do país – nelas se integrando, necessariamente, por exemplo, as de inspiração religiosa e as que deveriam ser transmitidas pelas corporações profissionais – não se disputem em razão de preconceitos obsoletos, calculismos pessoais ou políticos de curto prazo, minudências distintivas e fúteis e se deixem por estas instrumentalizar, ou queiram, por essa via, instrumentalizar os cidadãos.
Não é o momento para isso: nunca o foi, nunca o será.
Por outro lado, é necessário, também, que o discurso mediático da intriga política verrinosa e circunstancial ceda, pelo menos agora, às exigências do momento, dando lugar a análises frias, desapaixonadas e objetivas da realidade que vivemos.
Só analisando com seriedade as questões fundamentais que hoje nos afligem, podemos ir ao encontro da raiz dos problemas, em busca de soluções de justiça e eficácia.
Só assim se encontrarão, simultaneamente, também, os consensos necessários às medidas que se têm de tomar hoje e que, seguramente, hão-de mudar várias vezes, conforme as circunstâncias da pandemia.
Só quem mais sofre os malefícios da crise está – injusta e sacrificadamente – em condições de compreender, aqui e agora, o que importa assegurar, quais os interesses imediatos a que atender, com a maior urgência e com todas as forças.