A peste: próximos capítulos


Preparemo-nos para restringir “a liberdade de circulação, preferencialmente desacompanhada”.


Os ritos jurídicos procuram ordenar a realidade, moldar as expectativas, conferir previsibilidade à “novidade”. No caso da pandemia hodierna começamos a sofrer com a repetição, com a segunda vaga que chegou e a terceira de que não se fala, como desta pouco se falou e bem pouco se fez para mitigar os efeitos. Ao dia de hoje, todos somos Bill Murray, presos a’O Feitiço do Tempo:deitamo-nos para reviver no dia seguinte o dia que acabámos de viver.

Os ritos jurídicos também se vão repetindo, com algumas benfeitorias, evitando algumas das escorregadelas constitucionais da primeira vaga da pandemia, sem maiores consequências porque o povo é sereno, e os tribunais sereníssimos. Não deixa de assustar (e muito) a aparente insensibilidade da maioria da lusitana população aos muitos atropelos que em nome da prevenção dos efeitos da pandemia têm vindo a ser cometidos. Quarenta e seis anos depois do 25 de Abril permanece uma natural inclinação para o vergar da cerviz, para o torcer da boina entre as mãos sussurrando o “vocemecês é que sabem”, o dativo do poder à “Vossa Mercê”, encurtado nos dias de hoje para o “Você” que tanto indigna as magistraturas quando proferido com candura por um vendedor de sonhos com bola.

“Eles é que têm os livros, eles é que sabem”. Em matéria de protecção de direitos fundamentais, o texto Constituição da República Portuguesa é dificilmente melhorável. Já a sua aplicação deixa muito a desejar, começando pela distância que os portugueses mantêm em relação ao sentido do texto, uma coisa mais desconhecida do que o hino, menos desfraldada do que a bandeira e que não é vista como sua. Compare-se o sentido proprietário do comum dos cidadãos americanos em relação ao texto da sua Constituição (Bill of Rights incluído) e o desconhecimento nosso de cada dia dos direitos que a lei fundamental nos confere e que tendemos a esquecer. A educação tem de ser mais do que saber ler e escrever. Nos tempos em que os limites da Constituição são postos à prova, não deixa de assustar a incultura na matéria.

A “questão constitucional” alimentou entre nós década e meia de discussão política e justificou duas revisões constitucionais. Mas a “questão constitucional” centrou-se no sistema de governo (1982) e na organização económica (1989). A parte i da Constituição, dedicada aos direitos fundamentais, e em particular o regime dos direitos, liberdades e garantias, tem perdurado e não sofre contestação. Pior, escreverão alguns, sofre com o desconhecimento, com a desaplicação, com o desprezo e com os atropelos, multiplicados nos tempos de cólera.

Nem tudo são más notícias. O projecto de decreto do Presidente da República declarando um novo estado de emergência que ontem deu entrada na Assembleia da República revela progressos em relação aos decretos sobre o tema publicados há alguns meses, acolhendo sob a forma de benfeitorias muitas críticas que os cultores dos direitos fundamentais foram fazendo. Também há, porém, nele um fraseado orwelliano que provoca o sorriso ou o frio na espinha, consoante a circunstância: “especificar as situações e finalidades em que a liberdade de circulação individual, preferencialmente desacompanhada, se mantém”. O decreto presidencial avança a possibilidade de utilização dos recursos, meios e estabelecimentos de saúde dos sectores privado, social e cooperativo. Tal não deixará de fazer progredir as negociações do Governo com algumas das empresas privadas. Mais polémicas serão a concretização da anunciada “mobilização” de quaisquer trabalhadores para apoiar as autoridades e os serviços de saúde ou a prévia realização de testes como condição de acesso a espaços públicos ou locais de trabalho.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990