Durante a próxima madrugada estaremos todos com a nossa atenção no que se passa do lado de lá do Atlântico. As eleições presidenciais americanas são por si só um momento relevante para os equilíbrios geopolíticos, mas esta assume particular relevância por várias razões. Entre elas, destacaria duas essenciais: o Presidente dos EUA é o inenarrável, amoral e racista Donald Trump e o mundo atravessa uma crise sanitária com fortes implicações económicas e sociais, às quais se juntam o recrudescimento dos nacionalismos primários, da intolerância, da xenofobia e racismo.
O conhecimento cada vez maior que vamos tendo da arquitetura político-constitucional americana, bem como do tecido social de cada um dos Estados americanos permite-nos hoje perceber que o aparecimento de um Presidente como Trump, não é propriamente uma falha/acaso do sistema político norte-americano. Não. Trata-se mais da exteriorização de um sintoma que perpassa a sociedade dos Estados Unidos, mas que se vai revelando aqui e ali um pouco por todo o mundo.
Lá, como cá, existe uma grande divisão social. De um lado encontramos aqueles que proliferaram com o sistema democrático. Foram singrando na vida (em politiquês, tiveram oportunidades) aqueles que nasceram em famílias cujo apelido abre portas como que por magia e consequentemente tiveram uma educação melhor, condições económicas para, sem grandes sobressaltos, poderem empreender, ter um bom emprego, créditos bancários, etc. Por outro lado, todos os outros, que se viram empurrados para a pobreza, mesmo tendo trabalho e emprego. Consequência, aqui também, do berço onde nasceram, tendo cada vez mais dificuldade em sair do círculo vicioso de pobreza e das dificuldades que limitam as suas vidas à sobrevivência de ordenado em ordenado.
Os políticos, fechados em rituais formais próprios da política e com um discurso demasiado hermético onde tudo é complexidade, foram-se afastando cada vez mais destas pessoas abandonadas à sua triste realidade, que não encontram na política tradicional qualquer resposta.
O individualismo, faceta personalista do capitalismo, fez o resto. É cada um por si. Portanto, o discurso contra um sistema com décadas de insucessos sociais, obtém bastante sucesso.
Obviamente, a realidade encerra muitas outras questões, mas as eleições nos Estados Unidos, mostram essencialmente 2 Américas, diametralmente opostas. Por um lado, a América dos instruídos, dos cosmopolitas e por outro a América de uma maioria branca de desesperados, na pobreza, que através do discurso básico de Trump, culpabilizam tudo e todos pela sua vida miserável: os políticos; as outras raças; os imigrantes; os impostos que pagam… a democracia.
O candidato do Partido Democrata, longe de entusiasmar, acaba por ser o candidato da decência, uma vez que o atual Presidente aposta tudo na corrupção moral e ética, ofuscando a realidade da sua política que aumenta ainda mais as desigualdades.
Os últimos 4 anos dos Estados Unidos permitiram-nos observar, bem de perto, os riscos que pendem sobre a nossa própria democracia e acima de tudo, mostram-nos que os eleitores se preocupam muito menos com a existência ou não de políticos oportunistas, que “vendem a própria mãe” em troca do poder. Neste momento existem muitos eleitores que cá, como lá, apenas se querem “vingar das malfeitorias” que os políticos lhe fizeram ao longo dos anos, pois a sua vida continua na mesma, senão mesmo pior, enquanto os que sempre tiveram as oportunidades continuam a tê-las.
Pedro Vaz