Esguios, escanzelados, obsessivos, partilham a boa forma física, as maneiras afáveis, o estilo cortês. Passaram há muito a casa da juventude e vivem, como destroços solitários, de escassas rendas. Têm insónias a mais, parafusos a menos. Ambos, por vontade própria, se fizeram cavaleiros andantes. O primeiro, por meio de uma espadeirada escarninha dada por um estalajadeiro; o segundo, sem lanças para limpar nem outros cavalos que os do seu Chevrolet Cruze, por acção de um acontecimento interior que lhe esturricou o miolo. Quixote é o nome que ambos tomaram para si. Mas entre o fidalgo de la Mancha e Quichotte (pronuncie com os lábios em bico, em elegante francês) há o Google a separá-los.
Salman Rushdie, que em “Os filhos da Meia-Noite” nos deu uma alegoria da distância que vai da ficção à realidade, ao 14.º romance, que a Dom Quixote acaba de publicar com tradução de J. Teixeira de Aguilar, cruza a fronteira que separa os dois campos. O autor indo-britânico, nascido em Bombaim, faz saltar Dom Quixote do cavalo, enfia-o num carro, dá-lhe um comparsa, uma TV e um smartphone e, com o prego narrativo a fundo, fá-lo viajar por uma América que, corroídas as fronteiras entre a verdade e a mentira, o real irreal e a “reality”, se encontra à beira do colapso moral e espiritual. O quadro da peregrinação cultural, sem o flagelo das dicotomias fáceis, merece-lhe fortes buzinadelas de protesto e um riso magoado. No espelho retrovisor, figuras e elementos narrativos (de Zeus ao Pinóquio) dados em intertextual roda livre, formulações herdadas, figurinos petrarquistas, a melhor tradição metaficcional.
Wikipedicamente falando, dir-se-ia que o romance de Rushdie conta a história de Sam DuChamp, um sofrível autor de livros de espionagem, que cria Quichotte, recém-dispensado viajante da indústria farmacêutica (Mr. Ismail Smile, director de vendas, diz o seu cartão de visita) obcecado pela televisão e vítima de uma impossível paixão que o leva a uma busca pela América para provar que é digno da mão da amada. Um e outro, a responderem a desafios urgentes, estão prestes a enlouquecer num mundo que caminha na mesma direcção.
Muito embora “Quichotte” possa ser lido como um livro de aceleradas aventuras, uma autobiografia desvairadamente ficcionada, ou até um romance faceto que não se deixa prender na quadrícula apertada do género, é, na verdade, uma obra de engenharia de escrita ficcional, de que os sumários que encabeçam todos os capítulos fazem prova. E tão apta a trepar a alturas épicas como a descer a crónica do quotidiano.
Tal como o famoso fidalgo de Cervantes, o Quichotte de Salman Rushdie está enamorado de uma dama (ou do que dela poderia validar a sua própria vida) cujo coração se propõe conquistar e a quem envia cartas a abarrotar de expressões de adoração. E uma selfie. Não precisou de a inventar: de origem indiana, ela própria se (re)inventou na América. Dá pelo nome de Salma R (a irónica semelhança com o nome do autor é difícil de ignorar) e é uma super-estrela de TV, uma titânica influencer, a Oprah da América 2.0, a quem cabia “confortar a angústia da América, acalmar as suas fúrias, celebrar os seus amores”. Cerca de 30 anos mais nova, acumula, ela própria, um prodigioso currículo de vulnerabilidades que merecem detalhados acompanhamentos narrativos. Não é um erro de casting: se Quixote era um leitor empedernido de romances de cavalaria, Quichotte é um espectador viciado em programas televisivos. Horas e horas de consumo desgovernado: comédias de costumes, telenovelas, dramas de hospital, concursos de canto, doses cavalares de realitys shows (incluindo o célebre talk show de Salma R.) – tudo o que o ecrã debita, num estardalhaço enumerativo que serve de arranque ao romance e que vai bem com os apetites da sociedade atual. Junte-se-lhe uma boa porção de websites duvidosos. No mundo de Dom Quixote tudo o que existe ou acontece há de aparecer em letra de forma — porque foi em letra de forma que tudo aconteceu pela primeira vez; no mundo de Quichotte o que acontece ou está para acontecer passou já nalgum ecrã, o qual acabou por absorvê-lo e fazer dele um potencial cidadão.
Quichotte (cai o honorífico dom) tem página de Facebook. E é nesta rede social que anuncia, com aquele espírito de quem não duvida ser capaz de levar a água ao seu moinho, o louco intento, as futuras glórias. A reacção dos “amigos entre aspas” não tardou e diz bem do papel que aqui tem a jogar a cultura-lixo: “houve emojis de testa franzida e Bitmojis a agitar os dedos reprovadoramente em sua direcção, e houve GIF com a própria Salma R., a trocar os olhos, a deitar a língua de fora e a girar o dedo na têmpora direita”. Debaixo da bonecada e da tralha da TV, há uma biblioteca, repleta de clássicos, que Quichotte convoca, reproduz, põe em circulação, reencena, cruzando-os com a baixa-cultura, que acaba por fazer implodir pela saturação de referências. E é assim, em regime de satírica vizinhança, que Medusa, Penélope, a boneca Barbie e “as princesas de fortuna hoteleira” se vêem a conviver, juntamente com Ulisses, Perseu e os famosos por coisa nenhuma.
Montado no velho Chevy, que vem render o Rocinante, sai Quichotte em picaresca tournée pela América contemporânea, dando início a uma carreira que tem tanto de triunfal quanto de desastrado. Onde Quichotte vê uma maravilhosa Dulcineia, norte e motor da sua busca, o leitor vê uma mulher bipolar cheia de mazelas. Onde Quichotte vê um cavaleiro de nova espécie, o leitor vê um stalker, tontinho manso. São muitos os temas que Rushdie põe a rodar, como moinhos de vento, nesta delirante recriação – a migração, a xenofobia, a questão racial, o crime cibernético, o mundo das fake news, o impulso sexual abastardado. Mas à exuberância temática não corresponde aquele impulso de mera descarga. Rushdie, que nos dá o que se pede a um bom escritor rodado (controle sobre os seus materiais, ritmo, estilo, inesperadas manobras verbais), nunca se limitando a espanar a Quixote o pó dos séculos, eleva o programa que o título agita muito acima dos padrões geralmente alcançados pela fórmula parodística.
No banco do pendura, o miraculoso filho adolescente, Sancho, pois claro, produto da sua imaginação delirante. “Que época para eu chegar”, lastima o puto, magrela, esticadinho como o pai, a princípio desbotado, longe da alta definição que há-de alcançar e com o conhecimento do progenitor: “Este interminável deambular, observar e nunca chegar, uma Odisseia sem uma Ítaca, sem uma Penélope, e eu um Telémaco deslocado a vaguear com ele”. Já no que respeita a visões do mundo, parece ter puxado ao original escudeiro. Tanto assim que o berro da aparição dá lugar à pergunta carregada de cálculo material: “Que ganho eu com isto tudo?” Páginas adiante: “Posso ter uma conta bancária? Um cartão de débito é importante. Um saque a descoberto é importante. Se a pessoa não compra coisas, se não faz reembolsos, o sistema não reconhece que ela existe”.
Com mais sal na moleirinha que Sancho Pança, teme pela sua vida de personagem de ficção, a única que realmente conta. E começa a ver no seu nascimento uma certidão de óbito pré-datada. Sem Quichotte, e falhada a quixotização de Sancho, a morte chega com aviso prévio: “Olhou para os braços, para as mãos, para o tronco, para as pernas. Estalavam e estavam distorcidos. A qualidade da imagem tinha-se tornado realmente má. Não haveria Wi-Fi por ali? […] Passou de alta definição a primitivo analógico e agora a sua única esperança, toda a sua esperança, era que a mulher que amava lhe abrisse os braços”.
Sancho, filho da cultura-lixo e de um desaparafusado, é um dos trunfos deste romance surpreendente. Não sabemos o que mais admirar no seu criador: se aquele espírito criativo para o qual não há horizontes estreitos, se a fluência da imaginação, se as transições rápidas, magnificamente ginasticadas, se o modo de dizer, sentir e iluminar o humano, o fascínio do amor e o mistério da morte.