Depois do trabalho de fôlego que fez com Karl Kraus (Os Últimos Dias da Humanidade e Nesta Grande Época), António Sousa Ribeiro lançou-se num outro exercício, tão ou mais laborioso: a tradução de A Montanha Mágica, de Thomas Mann. E convém começar exatamente pelo tradutor. Num país onde, até há bem pouco tempo, predominava uma influência francesa – visível, inclusive, nas traduções -, começou lentamente a surgir (mérito devido, talvez, a Paulo Quintela) um conjunto de tradutores que nos permite ter acesso a outras latitudes e a outras tonalidades: António Sousa Ribeiro, sem dúvida, mas também João Barrento, Teresa Seruya ou Gilda Encarnação são os nomes talvez mais conhecidos. E se desta última já tínhamos uma tradução do livro de Thomas Mann – publicada pela Dom Quixote -, com esta tradução recente de Sousa Ribeiro dispomos doravante de duas versões diferentes de um dos monumentos da literatura europeia do século XX – um dos eixos Proust-Mann-Joyce, como dizia um crítico não muito benevolente de A Montanha Mágica. Estando a edição da vertente literária de Thomas Mann praticamente completa – ou mesmo já completa – falta, no entanto, o politicamente complicado Considerações de um não-político.
Dizia algures Rilke que um romance se assemelha a uma catedral, necessitando, sem dúvida, de uma estrutura sólida, mas podendo conter um conjunto maior ou menor de arabescos, de desvios, de detalhes ou pormenores – excessivos ou não, mas muitas vezes como uma afirmação da própria literatura. A Montanha Mágica é, sem dúvida, uma catedral: difícil de penetrar (um livro de um outro tempo, com as suas 800 e muitas páginas), com diversas formas de entrada, com locais mais ou menos escondidos, com divagações, delírios, uma espécie de romance de formação cheio de derivas. Hans Castorp, “filho problemático da vida”, vai visitar o primo Joachim Ziemßen ao Berghof – um sanatório, muito comum na época, para o tratamento da tuberculose – durante 3 semanas e acaba por ficar 7 anos nesse local algo inóspito, com o dia dividido em horários inflexíveis. Daí decorrem uma série de encontros, de pequenos acontecimentos, sendo o mais relevante, talvez, a paixão por Clavdia Chauchat que o faz recordar uma paixão de infância por um colega, Pribislav Hippe – um biógrafo de Thomas Mann designava-o como um “mitógrafo do desejo homossexual”; quem queira, aliás, avaliar melhor essa personalidade contraditória, obscura, pode sempre consultar um artigo que Colm Tóibín escreveu na London Review of Books, onde a família Mann, como boa família burguesa, é retratada de forma crua, com os suicídios, os ódios, a homossexualidade mais ou menos escondida e uma relação incestuosa entre Klaus e Erika, filhos de Thomas Mann.
No entanto, o mais importante são as longas divagações, os diálogos intermináveis, os embates, em que Settembrini, o representante algo anacrónico de um humanismo não menos anacrónico, e Naphta, jesuíta defensor “do terror para a salvação do mundo e para conquistar o fim da redenção” – acaba por se suicidar quando Settembrini se recusa a bater com ele em duelo – se digladiam pelo pensamento, a alma, do jovem Castorp.
“Estou farto de saber que o Renascimento trouxe ao mundo tudo aquilo a que se chama liberalismo, cidadania humanista; mas os seus ‘sublinhados etimológicos’ deixam-me frio, pois a era conquistadora, a era heroica dos seus ideais, há muito que passou, estes ideais estão mortos, pelo menos, estão hoje a dar o último suspiro e os pés daqueles que lhes vão dar o golpe de misericórdia estão já à porta”.
São páginas intermináveis onde nada acontece, cheias de discussões e divagações sobre o tempo, a morte, o corpo, a doença, o amor, o progresso, todos estes temas que, de uma forma ou de outra, cativaram a consciência finissecular e que levaram um crítico a dizer de Thomas Mann que ele era “o mestre de diversos tipos de tédio” – mas ninguém nos garante que o tédio, o enfadonho, não tenham o seu valor.
Hoje, certamente, este tipo de construção tornou-se impossível e Thomas Mann talvez não tenha descendentes – o que, mais uma vez, talvez seja mérito de Mann: um escritor sem descendência pode significar que ele fechou um determinado estilo e talvez não haja nada mais odioso que a descendência literária.
No entanto, o mais interessante é que quando é publicado, em 1924, A Montanha Mágica já era, em certa medida, um livro impossível. Da mesma forma que Os Buddenbrook, primeiro livro de Thomas Mann e com o qual conquistou o Nobel (hoje isso seria impossível, mesmo para Thomas Mann), também A Montanha Mágica surge como um texto de uma outra época, de um outro tempo, de um outro mundo. Thomas Mann, aliás, tem isso bem presente. Numa espécie de prólogo que antecede o livro, afirma: “Contudo, passa-se com ela (com a história de Hans Castorp) o que se passa hoje com as pessoas e, entre estas, não menos com os contadores de histórias: é muito mais velha do que os anos que tem, a sua idade avançada não pode calcular-se em dias, os anos que sobre ela pesam não podem ser calculados em períodos solares”.
Esta velhice prematura da A Montanha Mágica tem, no entanto, uma razão de ser que o próprio Thomas Mann esclarece: a Grande Guerra (“Ela passa-se ou, para evitar propositadamente todo o presente, passou-se e foi passada antigamente, outrora, noutros tempos, do mundo antes da guerra”). Como refere Sousa Ribeiro no prefácio, o romance encerra qualquer coisa, é o “adeus definitivo à Alemanha Guilhermina e, pode bem dizer-se, também à Europa de antes da guerra”.
Mas a relação à Grande Guerra não parece ser assim tão linear como nos faz crer Mann. A primeira notícia que temos do texto – sem o nome de Montanha Mágica – é de 1913 (a mulher de Mann esteve em Davos, em 1912, devido à tuberculose). Interrompido por diversas vezes – a primeira das quais em 1914, com o início da guerra – só retoma a escrita, de forma mais séria, em 1919. Em todo o caso, a Grande Guerra é o grande fantasma ao longo destas 800 páginas, coordenando de longe todas as discussões, todas as reflexões que se vão sucedendo, sem que o problema político – pelo menos de uma forma crua, sem as subtilezas que lhe conferem Settembrini e Naphta – surja de forma totalmente visível (há a excepção de uma pequena passagem, onde a lenta preparação para a guerra dá entrada num mundo imune a qualquer intromissão do exterior). Como uma corda tensa que coordena de longe os acontecimentos, os pensamentos, sem nunca se dar a ver, o espectro da guerra intromete-se em todo este universo fechado.
É possível, desta forma, dar um outro conteúdo a essa febre geral que acomete todos os pacientes do Berghof – até Settembrini, o humanista anacrónico com os seus elogios à razão e ao progresso, se encontra febril. É certo que há aqui uma dimensão histórica – e até biográfica – que se liga à importância que essa doença, a tuberculose, teve no início do século XX. Mas este estado febril, doente – nota-se aqui a influência de um conhecido texto de Spengler -, esta lenta decadência que se espelha no microcosmos do Berghof, diz igualmente respeito a um juízo epocal, por parte de Thomas Mann, relativamente à Europa, que pouco tempo depois iria desembocar na catástrofe da Grande Guerra: é a Europa que se encontra em estado febril, e todas as discussões, todas as subtilezas de pensamento, todos os embates entre duas visões do mundo completamente antagónicas chegam-nos contaminadas de uma doença que as vai corroendo aos poucos. É uma espécie de astúcia da doença, para convocar um termo de um pensador distante de Thomas Mann, que trabalha, com uma necessidade férrea, inescapável, até aqueles que mais distantes se encontram de uma retórica guerreira.
É desta forma, aliás, que termina o texto de Thomas Mann, tornando impossível o romance de formação que pretende, em certa medida, ser. Páginas intermináveis de reflexões inclementes sobre a vida por parte desse seu “filho problemático”, discussões não menos intermináveis entre duas forças antagónicas que disputam Hans Castorp – isto é, a nova geração, o futuro -, que se lançam uma contra a outra com todo um conjunto de argumentações sofisticadas e subtis, acabam, no fim, com a saída de Castorp do Berghof, arregimentado para o que haveria de vir: “É a planície, é a guerra”.
E o resultado, sombrio, de A Montanha Mágica é este: todas estas aventuras do pensamento, todas as palavras trocadas, já nada ensinam e de nada servem face ao andamento inexorável dos acontecimentos.