A natureza encontra sempre um jeito de deixar clara a sua mensagem, a qual se reveste de aspectos de beleza e esplendor, e nos maravilha com a sua incrível tenacidade mas, também, não esconde um lado impiedoso, por vezes terrível. Por todo o lado, mesmo nas gigantescas metrópoles que hoje ameaçam o reino selvagem, há emissários que, inconscientes do seu papel, penetram esta trama em que a ordem funciona como uma espécie de negativo do mundo natural, e em que, para muitos de nós, a janela de que nos servimos para espreitar a verdadeira dimensão do que está lá fora é a televisão. Contudo, mesmo nas nossas ruas onde até o canto dos pássaros já regista respostas ao ruído do trânsito, é possível estar-se numa praça ou jardim, e ver ao nosso lado um cão e uma cadela, pegados, acasalando, e sentir esse fascínio pingado de horror ao ver como depois uivam na triste tentativa de separar o que o cio uniu, essa espécie de monstro com duas cabeças, isto na descrição do poeta Heiner Muller, duas cabeças a quererem arrancar-se uma à outra, fumegando, suando, solitárias na sua dor, antes de serem separadas ao pontapé se preciso seja por um bando de miúdos ou por um bêbedo.
No período de confinamento a que todos fomos forçados na primavera, o naturalista britânico David Attenborough disse que foi o canto dos pássaros no seu jardim que, com sua melodia, lhe fazia as malas e o levava noutras viagens. Naqueles dias, e em antecipação ao documentário “Life On Our Planet”, que estreou no início deste mês na Netflix, ele deu uma entrevista à BBC em que disse que se considerava um sortudo, por ter o jardim e a companhia dos pássaros, reconhecendo, no entanto, que para muitos os constrangimentos da pandemia estavam a mostrar-se intoleráveis. Isto levou-o a comentar esse facto paradoxal de nunca como nos nossos dias ter havido tanta gente sem qualquer ligação com o mundo natural e que, apesar disso, graças à televisão, “sabem mais sobre o que existe nesse mundo do que em qualquer outro período da história”. Um dos aspectos mais cativantes para as audiências neste tipo de documentários é o lado majestoso e épico como vemos a vida alimentar-se da vida, cenas captadas de forma espectacular graças à evolução dos meios tecnológicos, o que nos dá a sensação de observar qualquer coisa de íntimo, não pelo buraco da fechadura, mas tendo uma visão total, oferecendo-nos uma ideia do que seria a perspectiva de um deus. E se, ao longo dos anos, os programas que este naturalista narrou, escreveu ou protagonizou chegaram a inspirar um certo temor espiritual nas audiências, Attenborough sempre disse ser agnóstico. Um dos realizadores do novo documentário, Alastair Fothergill, entende o encanto hipnótico e mesmo o assombro que as cenas que captam produzem junto de populações que raramente abandonam o espaço urbano, e cujas experiências mais excitantes foram vividas a assistir a filmes de super-heróis, desses carregados de espalhafatosos efeitos especiais. “Estão a ver coisas que lhes parecem irreais e custa-lhes a acreditar que o que estão a ver aconteceu mesmo. Parece-lhes que são histórias dignas de ficção científica.”
Em grande medida esse é um dos perigos agora que é preciso salvar um planeta que, para um número crescente de pessoas, está mais longe do que Marte. E, para muitos de nós, é difícil acreditar nesses marcianos que, afinal, somos nós, e que, nas próximas décadas, se não alterarmos o rumo, acabarão engolidos por uma catástrofe que resulta desse corte e desprezo face ao mundo natural. Para Fothergill, o grande trunfo destes documentários é o facto de responderem a um desejo, que existe em todos, de restabelecer esse laço ancestral, essa intimidade com a natureza. “Julgo que se trata de uma necessidade humana básica e que precede o aparecimento da civilização.”
Aos 94 anos, Attenborough reconhece como a sua vida foi bafejada por um privilégio extremo e irrepetível, sendo um naturalista que começa a trabalhar na altura em que o fenómeno das viagens áereas permite dobrar as dimensões do tempo e do espaço, cobrindo em algumas horas distâncias até então instransponíveis. As velhas imagens de arquivo, os registos das suas primeiras viagens, ganham um poder evocativo bastante comovedor quando, neste documentário, o vemos como um jovem produtor televisivo indo ao encontro de espécies exóticas hoje ameaçadas ou extintas, o que torna difícil não levar a sério as suas palavras quando nos diz que estamos a ficar sem tempo e que é urgente restaurar o equilíbrio ecológico no planeta.
Attenborough diz que este filme é, por isso, o seu depoimento enquanto testemunha de defesa do ambiente. Encarando o fim, procura deixar uma mensagem de esperança ao reflectir sobre a sua carreira de mais de seis décadas, e ao mesmo tempo que se dá conta que provavelmente ninguém mais poderá ter a sorte de ver o que ele viu, esse percurso assume um relevo e uma preponderância que ele mesmo estava longe de imaginar até ao início deste século. As suas viagens e descobertas surgem, assim, contrapostas ao processo de degradação das condições de vida no planeta devido ao aquecimento global, uma tragédia que Attenborough demorou a reconhecer, mas que o fez tornar-se um dos activistas mais empenhados no esforço de consciencialização para a perda da biodiversidade e todos os riscos que fazem de nós, mais do que espectadores, protagonistas do sexto episódio de extinção em massa na Terra.
Há aquela célebre sequência final de “Blade Runner” em que, prestes a esgotar-se o seu tempo, o ciborgue rebelde Roy Batty, interpretado por Rutger Hauer, tem um momento de penetrante clareza na compreensão do fim, daquilo que se perderá para sempre com a sua morte. Nesse último e tão icónico fôlego, diz: “Eu vi coisas que vocês nunca imaginariam. Naves de ataque em chamas na constelação de Órion. Vi feixes de luz brilhar na escuridão junto ao Portal de Tannhauser. Todos esses momentos irão perder-se no tempo, como lágrimas na chuva.”
Em certo sentido, Attenborough é uma das pessoas em melhores condições de compreender estas palavras, pois com a sua morte perder-se-á tudo aquilo que as câmaras não puderam registar, tantas buscas infrutíferas, tantas confusões e momentos de tédio ou de incerteza, além dos riscos, de um sem fim de complicações que quebrariam o encanto que se pretende produzir na audiência. Algo menos épico, os aspectos delicados, imprevistos e os desabafos ou gemidos que mal se ouvem, esses sussurros que passam despercebidos na superfície das grandes aventuras. Mas tal como Batty, este naturalista poderia suplicar a alguém pela sobrevivência da sua incomparável memória, falando no fascínio de ter visto uma orca atacar uma foca acabada de nascer, um galho caído que faz tropeçar um caribu no momento em que era perseguido por um urso pardo, um asteroide a atravessar os céus caindo no Iucatão, ou a ascensão de um mamífero bípede, com talento para contar histórias, e depois acreditar piamente nelas, armado de um harpão e comandando um navio sobre as vagas com um mandato bíblico para dominar e subjugar toda a vida no planeta.
O arco da sua longa e extraordinária carreira, como notou Carolyn Kormann na “The New Yorker”, rastreia a forma como o público foi mudando a sua compreensão sobre o mundo natural: de algo que era nosso para explorar até ao limite quando não se imaginava que pudéssemos causar-lhe graves danos, até à noção actual de que hoje este se encontra irreversivelmente ameaçado pela acção do homem, inaugurando uma era de extinção em massa e catástrofes ambientais em vertiginosa sucessão. Outra coisa que David Attenborough aprendeu ao longo dos anos é que as grandes mudanças de comportamentos exigem uma estratégia clara, uma comunicação que seja inspiradora, que fale ao melhor de nós ao invés de causar simplesmente alarme. Uma coisa que este naturalista nunca traiu foi a extraordinária criatividade e resiliência da vida. Na sua vida, testemunhou não apenas o espectáculo do mundo selvagem como a capacidade da nossa espécie para fazer o que se julgava impossível, e quando se dirige a nós, fala com o respeito de quem assume ter diante de si uma presença todo-poderosa, quase mitológica. Esse público que, unido em torno de uma causa, fará o que for preciso para alterar o curso dos acontecimentos.
Se hoje se fala muito na pegada ecológica, se tantos de nós não conseguimos com a nossa passagem por este mundo pisar mais fundo que isso, deixar marcas mais significativas, um sinal do impacto que teve Attenborough, e aquele de que este naturalista mais se orgulha, é o facto de mais de 20 espécies terem sido batizadas com o seu nome, desde umas ervas daninhas com flores ao longo de uma estrada no Gabão (Sirdavidia), a uma das maiores plantas carnívoras em forma de jarro, nas Filipinas (Nepenthes attenboroughii), passando por uma rara borboleta amazónica (Euptychia attenboroughi) e um gorgulho não voador da Indonésia (Trigonopterus attenboroughi), ou um papa-formigas espinhoso quase extinto (Zaglossus attenboroughi), e até um dinossauro aquático (Attenborosaurus conybeary).
Contudo, é inegável que o seu impacto mais decisivo é no imaginário popular. Além da imagem do aventureiro florindo de um pasmo perpétuo diante das coisas e seres deste mundo, há aquela voz ao mesmo tempo suave e muitíssimo confiável, uma voz de tal modo reconhecível dos tantos documentários e séries televisivas que narrou que se tornou o motivo de um número sem fim de homenagens e paródias, das quais, entre nós, a mais conhecida é a imitação de Herman José, com o seu David Attenburguer. O certo é que este naturalista não apenas transformou a relação das audiências em todo o mundo com a vida selvagem, como revolucionou a própria televisão.
Aos 28 anos, quando Attenborough entrou como estagiário na BBC, em 1952, não tinha qualquer experiência no meio, nem sequer como espectador. Até então só se tinha sentado uma vez à frente de um televisor e, no entanto, não demorou a integrar-se na equipa e a colaborar na criação de um programa, “Zoo Quest”, que logo alcançou grande popularidade. Foi então que fez as suas primeiras viagens a zonas remotas do planeta para filmar animais nos seus habitats, capturando alguns para os trazer para o Zoo de Londres. Essa foi a excepção. Ao longo de toda a sua carreira não voltaria a integrar qualquer expedição com o fim de capturar animais selvagens. A equipa de filmagens que o acompanhava então captou aquele que se julga ser o primeiro registo de um dragão de Komodo, na Indonésia.
Depois do sucesso do programa, Attenborough passou a integrar a direcção de programas da televisão pública britânica, e durante uns anos esteve fechado no gabinete. Mas tudo indica que, ainda que não tivesse conquistado a imortalidade como o mais famoso naturalista de todos os tempos, teria sido um executivo brilhante, tendo sido o responsável por apostas em programas pioneiros como “Civilisation”, escrito e apresentado pelo historiador de arte Kenneth Clark, ou “The Ascent of Man”, apresentado pelo matemático e cientista Jacob Bronowski, que viria a ser a grande inspiração de Carl Sagan na série “Cosmos”. Estes programas tiveram um papel crucial ao fazer do pequeno ecrã um meio de levar às salas de estar de todo o mundo um tipo de documentários que tornaram a história, a cultura e a ciência temas acessíveis e imensamente populares. Isto deu-se em 1965, o ano em que Attenborough conseguiu que a BBC fosse também a primeira televisão a ter uma emissão a cores. E apenas quatro anos depois, nessas mesmas funções, há outro triunfo seu que marcaria para sempre a história da televisão e da comédia. Depois de ser promovido a director de programas, foi sua a decisão de encomendar um programa de sketches a um grupo de seis jovens formados em Oxford e Cambridge: John Cleese, Michael Palin, Terry Jones, Eric Iddle, Graham Chapman e Terry Gilliam. “Monty Python’s Flying Circus” foi, como se sabe, um fenómeno global, inspirando gerações de comediantes em todo o mundo, e aprimorando essa estirpe de humor excêntrico que se tem por tipicamente britânico, dando origem a um vasto compêndio de bordões e provérbios descocados.
Mas com todas as oportunidades que deu, ao abrir caminho para outros, Attenborough deu por si a invejar a liberdade daqueles que a BBC punha no terreno, com a sua armada nas mãos de um bando de exploradores, acompanhados de cientistas, guias e equipas de filmagem, que estavam a viver e registar o último fôlego da épica, para trazer até às salas de estar essas intimidades e fantasias selvagens em palcos tão remotos. E foi assim que, no final da década de 1970, Attenborough criou “Life on Earth”, uma série documental que se impôs desde logo como um marco com o naturalista a deixar que o mundo espreitasse acocorado, entre umas malvas, uma série de animais e plantas que nunca tinham sido vistos. Lá aparecia ele, voltando-se de costas para algum espécime do paraíso, orgulhoso da sua plumagem insana, para sussurrar algum detalhe fulminante ou uma impressão capaz de estruturar e dar ainda mais corda ao encanto com que era seguido por centenas de milhões de alunos especados em frente à televisão. Essa série foi a primeira de muitas, e em breve Attenborough ver-se-ia obrigado a arranjar um armazém só para ter onde enfiar todos os prémios e diplomas com que era recebido de cada vez que regressava à civilização.
E vale a pena recordar como tudo começou, antes ainda de David se ter formado em ciências naturais em Cambridge, antes até de ele e o irmão, Richard Attenborough (1923-2014) terem assistido, em 1936, a uma palestra de Grey Owl, um conservacionista britânico que, na verdade, se chamava Archibald Belaney, tendo-se feito passar, até à sua morte, por um indígena das Primeiras Nações (Canadá). Embora houvesse aspectos fraudulentos na sua autobiografia, a mensagem ambientalista de Belaney teve grande repercussão e foi marcante para David. Já Richard, que viria a tornar-se actor e realizador, tendo interpretado o papel de John Hammond, o excêntrico bilionário que funda o Parque Jurássico no filme de Spielberg, e ganhando um Óscar de melhor realizador por “Ghandi”, em 1983, dedicou um documentário a Belaney, e defendeu o seu legado, lembrando que “a ideia de que a humanidade estava a pôr a natureza em perigo ao saquear as suas riquezas de forma imprudente era uma noção inédita à época”. Na mesma entrevista, dada em 2000, Richard garantia ainda que David nunca esqueceu o aviso de Belaney, e que prosseguiu os seus esforços.
Contudo, já vinha de trás o interesse de David pelos segredos e tesouros da natureza, por essa sua mitologia murmurada, descrita em fósseis. Tendo nascido apenas 17 dias depois de Isabel II, em 1926, este futuro cavaleiro do reino, desenvolveu ainda na infância uma obsessão por descobrir essas velhas tábuas em que a natureza foi inscrevendo a sua história, deixando um registo corpóreo, um rasto das antigas eras. David coleccionava fósseis. Vivia em Leicester, e não perdia uma oportunidade de sair de bicicleta para se ir meter nas velhas pedreiras de ferro e pôr-se a malhar nas rochas com um pequeno martelo que levava para todo o lado. Parecia um prisioneiro do presente de ouvido encostado na superfície do passado, doido por evadir-se. Algumas das pedras cediam, desintegravam-se, algumas revelavam no interior segredos com milhões de anos, como uma concha de amonite perfeitamente preservada. Em entrevista à “The New Yorker” no ano passado, Attenborough recorda a excitação em que ficava, como quem cava um convento nas conchas da mão, segurando uma pedra que à maioria não diz muito, mas que a ele lhe dizia que os seus eram os primeiros olhos humanos a contemplar aquilo. E este homem, que guarda em si memórias que dariam para animar tantos mundos, aos 94 anos, teme pelos vindouros, pelo assombroso espectáculo que terão perdido, que acabou antes mesmo de chegarem, teme por ver tapado esse poço fundo de espanto e admiração onde sempre se debruçou, essa fé que nunca precisou de deuses pois se bastava com a sensação de habitar num mundo cheio de magia. É esse homem quem, agora, em vez de estar preocupado com a sua morte, receia por nós as décadas que virão, desastres que só lhe irão beijar ou dar cabeçadas no túmulo, tornando cada vez mais invejável a sua longa vida, o seu jubiloso testemunho.