Mary Del Priore e o grande terramoto

Mary Del Priore e o grande terramoto


Segundo o ensaísta e romancista Miguel Real, este não é “mais um livro sobre o terramoto”, é “um presente para a historiografia”. É difícil não concordar com este juízo.


“Durante as celebrações da festa de Todos os Santos, no dia 1 de Novembro de 1755, pelas 9h30m da manhã, a terra rasgou-se e rugiu. Um maremoto tragou uma parte da cidade. Desaparecia, no curtíssimo espaço de apenas sete minutos, parte considerável da história que aí tivera lugar nos últimos 50 anos no reinado de D. João V, o ‘rei velho’”.

Este é o modo como a historiadora brasileira Mary Lucy Murray Del Priore (Rio de Janeiro, 1952) sumaria o Grande Terramoto de Lisboa na “Introdução” do livro que saiu no Brasil (Top Books, 2003), e acaba de ser publicado entre nós pela Objectiva, O Mal Sobre a Terra. História do Grande Terramoto de Lisboa, com prefácio do ensaísta, romancista e dramaturgo Miguel Real. Para ele, que conhece bem o cataclismo pois escreveu sobre ele um romance (A Voz da Terra, Dom Quixote, 2012) e uma peça de teatro (1755 – O Grande Terramoto, com Filomena Oliveira, Europress, 2006), para além de vários ensaios sobre o iluminismo português, este é o melhor livro escrito em língua portuguesa sobre o grande desastre de Lisboa. Para o historiador Ronaldo Vainfas, professor da Universidade Federal Fluminense (em Niterói): “Este não é mais um livro de Mary (…). É, talvez, o principal livro dentre tantos escritos por ela, um presente para a historiografia. Antes de tudo porque reconstitui, sob todos os ângulos, a tessitura de um facto histórico geral sem recuar diante dos detalhes mais ínfimos que o impacto do célebre terremoto ensejou no meado do século xviii”. 

A autora não se limita aos factos, mas apresenta o contexto e a interpretação. Continua ela, mais adiante na “Introdução”: “Ora em si o terramoto revelou, além das consequências imediatas, o não-factual: a emergência de fenómenos sociais surgidos das profundezas que, sem ele, continuariam dissimulados nas pregas das mentalidades colectivas. O medo da morte, o sebastianismo como signo de pavor das mudanças, o ódio de certas fracções da aristocracia pela burocracia emergente, a insegurança diante dos novos tempos que, junto com as Luzes, chegavam a toda a Europa. (…) O terramoto de Lisboa… é um espelho de uma sociedade dilacerada entre dois tempos. A significação desse facto – o sismo – desdobrou-se na reacção popular à destruição da cidade, mas também na luta entre os representantes – aristocratas, gente do povo, eclesiásticos – de duas formas de ser, viver e pensar.”

A autora é uma grande especialista em história do Brasil. Fez o seu doutoramento em História Social na Universidade de São Paulo e um pós-doutoramento na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Lecionou História em várias universidades brasileiras, como a Universidade de São Paulo e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foi laureada com diversas distinções como o Prémio Casa Grande & Senzala (2000), da Fundação Joaquim Nabuco, o Prémio Jabuti (1998), da Câmara Brasileira do Livro, e o Prémio Fundação Biblioteca Nacional (2009). Na extensa lista dos seus livros destaco História das Mulheres no Brasil (São Paulo, Contexto, 1997), História do Amor no Brasil (São Paulo, Contexto, 2005), Histórias Íntimas. Sexualidade e Erotismo na História do Brasil (São Paulo, Planeta, 2011) e, sobretudo, Histórias da Gente Brasileira (4 vols., Rio de Janeiro, Leya, 2016-18). É incrível que só em 2020 tenha sido publicado o seu primeiro livro em Portugal (D. Maria I, ed. Casa das Letras), mostrando a separação que o Atlântico estabelece entre dois povos com a mesma língua. Consultado o catálogo da Biblioteca Nacional, verifica-se que Mary Del Priore tem intervenções em obras publicadas em Portugal: fez a coordenação e introdução das Cartas de Lisboa. Cartas da Baía, com Paulo de Assunção, in Obra Completa do Padre António Vieira. Tomo 1, vol. 4, direção de José Eduardo Franco e Pedro Calafate (Círculo de Leitores, 2013) e escreveu palavras de abertura para A Trama e o Drama: o pensamento económico do padre António Vieira, de Paulo de Assunção, com prefácio de José Eduardo Franco e apresentação de Bernard Vincent (Esfera do Caos, 2013). Iniciada a leitura, será fácil concordar com Miguel Real. A escrita da historiadora brasileira, sempre bem documentada, é muito viva. Como alguém já disse, faz lembrar um romance policial. Mergulhamos nas ruínas do terramoto e na aflição das gentes. Leia-se mais um excerto, este do Capítulo III, “Depois do terramoto: Lisboa toda cheia de mágoa e tristeza”.

“No dia 2 de Novembro de 1755, Lisboa acordava com o ventre aberto. A capital do reino gemia com as ruelas, os telhados, as bodegas e as igrejas tão expostas quanto os ossos e as vísceras de um criminoso esquartejado. Um cheiro a fezes e enxofres exalava desse imenso e pesado corpo de pedra semimorto. As ruas estavam atoladas de cadáveres, um terço da cidade havia sido destruída. Sob os escombros, vidas perdidas, muitas. O ar que se respirava era de morte, não de vida”.

Priore pinta a catástrofe a partir dos depoimentos dos sobreviventes, entre os quais destaca o industrial e comerciante luso-francês Jácome Ratton. O livro pode ser cotejado com outros que têm o mesmo tema. Entre os mais recentes destacam-se: Rui Tavares, O Pequeno Livro do Grande Terramoto (Tinta da China, 2015), e Mark Molesky, O Abismo de Fogo. O Grande Terramoto de Lisboa ou Apocalipse na Idade da Ciência e da Razão (Relógio D’Água, 2019). 

Perante o pavor do rei D. José, que se refugiou num barracão na Ajuda, Sebastião José de Carvalho e Melo, o seu secretário de Estado e, mais tarde, marquês de Pombal, não só tomou conta da cidade, coordenando a reconstrução da Baixa destruída, mas também mandou fazer um inquérito sobre os estragos aos párocos das freguesias do reino. O físico e filósofo alemão Immanuel Kant usou as informações sobre o terramoto de Lisboa para elaborar uma teoria dos abalos sísmicos como fenómenos que resultam apenas de causas naturais (Vários Livros sobre o Terramoto: Escritos sobre o Terramoto de Lisboa, Almedina, 2005). De certo modo, foi uma investigação sobre o terramoto e, portanto, o início da sismologia moderna. O terramoto abalou também o pensamento filosófico. O francês Voltaire, primeiro no Poema Sobre o Desastre da Cidade de Lisboa (Alêtheia, 2013) e depois no romance Cândido ou o Optimismo (Tinta da China, 2016), criticou as ideias sobre a degradação do mundo com base na religião e pensou a natureza do mal na Terra. Será que viveríamos no melhor dos mundos possíveis, conforme pretendia o filósofo alemão Gottfried Leibniz? Em contraponto, o suíço Jean-Jacques Rousseau propôs a necessidade de se refletir sobre a culpa humana. Mais tarde, o escritor alemão Johann W. Goethe também escreveria sobre o terramoto. A respeito da relevância do terramoto para a origem do mal, veja-se Susan Neiman, O Mal no Pensamento Moderno. Uma História Alternativa da Filosofia (Gradiva, 2005). O tremor de terra teve também um impacto – fortemente negativo – na historiografia, dada a enorme destruição de documentos que causou. Veja-se o artigo da historiadora Mariana Françozo na História Global de Portugal (Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2020; com coordenação minha, de José Eduardo Franco e de José Pedro Paiva).

A ciência sabe hoje que o terramoto de Lisboa, com epicentro ao largo do cabo de São Vicente, teve uma magnitude de 8,5-9,0, sendo o 15.o mais intenso de sempre, tanto quanto se sabe (na altura não havia sismógrafos!). O mais forte de sempre foi o sismo de 1960 em Valdivia, no Chile, com uma magnitude de 9,4-9,6. O terramoto de Tohoku, no Japão, que destruiu em 2011 a central nuclear de Fukushima, foi, com o seu impressionante tsunami, muito semelhante ao lisboeta, mas teve um grau maior (9,1), que o coloca no 4.o lugar do ranking de sismos.

Sobre a figura do Marquês, a quem o terramoto proporcionou a ascensão ao poder absoluto, já foram escritos rios de tinta e muito mais se irá escrever. O livro mais recente é de Pedro Serra Lino, De Quase Nada a Quase Rei (Contraponto, 2020), com prefácio bastante encomiástico de Rui Tavares. Está em curso o Projeto Marquês de Pombal, que se destina a reunir e publicar todas as obras do marquês, assinadas ou não por ele. Foi Pombal o responsável último pela execução do jesuíta italiano Gabriel Malagrida, numa fogueira no Rossio, em 1761. Foi o último condenado à fogueira pela Inquisição portuguesa, que só acabou há cerca de 200 anos. Malagrida achava que o terramoto tinha sido castigo de Deus e que os homens, para não serem alvo da ira divina, não deviam voltar a pecar. Mas para a autoridade civil era preciso reconstruir a cidade, o que significa voltar a ter um aprazível sítio de pecado. O Marquês, uma figura complexa, paradoxal mesmo, pois para fazer brilhar as suas luzes apagava as luzes dos outros (“paradoxo do Iluminismo”, chamou-lhe o historiador britânico Kenneth Maxwell), impôs-se pela força. Hoje, aí temos a Baixa Pombalina como memória do maior terramoto europeu de sempre e também como memória do Marquês. Falta-nos ainda um museu do terramoto, que explique aos visitantes o que o livro de Priore tão bem explica.