J.D.Vance e uma reflexão de direita a partir do rust belt

J.D.Vance e uma reflexão de direita a partir do rust belt


Sobrevivemos à infância? E torná-la susceptível de nos ligar ao futuro, depende de políticas, de culturas, de mentalidades, de quê, afinal? Entre a introspecção auto-biográfica, a observação sociológica, a estatística da mobilidade social, o relato fantástico/terrível (fantasmagórico) de uma infância e adolescência em carne viva (permeada, sucessivamente, por violência bastante), entre o acerto de contas…


Hillbilly Elegy é a história de comunidades operárias brancas, do cinturão industrial norte-americano, nas quais a presença de famílias desestruturadas, a ausência de um amparo (e uma linha) para quem cresce, a emergência das drogas, do álcool, de uma violência larvar, com justiça pelas próprias mãos, tende a hipotecar as hipóteses de uma vida mais realizada. J.D.Vance passou pelo calvário de uma infância a ver mudar, constantemente, a figura paterna de referência ("nenhum país experimenta nada parecido. Na França, a percentagem de crianças expostas a três ou mais parceiros das mães é de 0,5 – ou seja, cerca de uma em duzentas. O segundo índice é de 2,6, na Suécia, ou seja, cerca de uma em quarenta. Nos Estados Unidos, o índice é chocante, de 8,2% – cerca de uma em doze – e o índice é ainda mais alto na classe operária", p.240), a mãe em cenas de violência conjugal e doméstica, o desperdício de dinheiro, os abusos do álcool, as vezes em que a progenitora foi detida, as incontáveis ocasiões em que aquela esteve em desintoxicação por drogas. Vance quase sucumbiu e abandonou a escola antes da ida para a faculdade. As notas não foram boas, as faltas muitas. Salvaram-no os avós, rústicos que haviam tido o seu próprio historial de pegas e violências, mas que deram (o sentimento de) acolhimento, hospitalidade, continuidade, estabilidade, coerência, amparo, amor a Vance. O obrigaram a estudar, a fazer os trabalhos de casa, vigiaram as más companhias ["todos os meus amigos planeavam ir para a universidade; o facto de eu ter amigos tão motivados vinha da influência da mamaw. No meu sétimo ano na escola, muitos dos meus amigos do bairro já fumavam marijuana. A mamaw descobriu e proibiu-me de andar com eles. Reconheço que a maioria dos jovens ignora ordens destas, mas a maioria dos jovens não as recebe de Bonnie Vance. Ela garantiu-me que, se me visse com qualquer rapaz da sua lista negra, ela atropelava-o com o carro. «E ninguém ficará a saber», sussurrou ameaçadoramente", p.166]. É delicioso o retrato da avó malvada, de espingarda permanentemente em punho, de linguagem brejeira, durona, sempre de pelo na venta. Tal como o é, nas trocas e baldrocas de casa, a tentativa de morar com o pai, este recém-convertido a uma Igreja cristã – pelo menos, com maior fervor que na anterior pertença débil -, com as ideias milenaristas, o rock – o perverso rock – a ter que ser afastado, e o pecado sempre por perto. Ou, na faculdade de Direito de Yale, pela qual se formará, todo o networking, e os jantares de nove talheres em serões a funcionarem como entrevistas de emprego.
Sim, diz Vance, caberia ao governo não criar guetos (habitacionais) para pobres; a limitação da concentração de pessoas com determinado nível de rendimento, em determinados bairros, permitiria outra interacção social que beneficiaria todos e impediria que uma cultura maciça de um fracasso existencial, visto como inelutável, se impusesse – a mobilidade social (ascendente) ocorreria com muito mais frequência. Sim, diz Vance, a assistência social devia ter outro cuidado, a legislação devia mudar no que a pais autorizados a ficar com crianças que têm que sair de famílias nucleares desestruturadas diz respeito, atendendo, de outro modo, a esses critérios, em particular com a restante família.
Mas há um discurso derrotista à partida, desencorajador de trabalhar mais, como se essa ética do trabalho, apregoada sempre, não tivesse, naquela comunidade, qualquer ligação com a realidade ("bem prega Frei Tomás…"). Como se o discurso da impotência, da desculpa da derrota, tivesse infectado todos, e os paralisasse para alterarem a sua situação. Um discurso que os avós de Vance lhe haviam incutido como sendo de rejeitar. Aqui, a questão política assoma com particular densidade: a família de operários da "rust belt" era, desde há muito, democrata. Todavia, uma experiência profissional como caixa de supermercado e, com ela, a dos benefícios sociais, os subsídios concedidos pelo Tio Sam, fez Vance começar a mudar de ideias: quem programou aqueles subsídios teria boas intenções (para com os mais pobres), mas, no fundo, desincentivava a emancipação. Vance é, hoje, um republicano, mas, como se percebeu, não é um radical: a questão habitacional, a ajuda precoce à criança, os critérios para o tratamento familiar dificilmente o colariam a uma direita mais contundente. E o jurista não ignora – e aduz ao seu livro – as estatísticas que mostram bem como em tantos países europeus a mobilidade social é, substantivamente, superior à dos EUA (como o caso nórdico a uma distância estratosférica, como, aliás, por exemplo, Joseph Stiglitz mostrara profusamente em O preço da desigualdade). 
Até certo ponto, há uma tensão entre o reconhecimento da sua singularidade – o primeiro da sua família nuclear a ir para a universidade; o primeiro, em toda a família, a formar-se; raríssimo caso, em Yale, vindo de uma família pobre -, o reconhecimento dos graves problemas de mobilidade social nos EUA e algum discurso que redunda em "se acreditarmos que com o nosso trabalho e esforço podemos subir socialmente, vamos sair do ponto em que estamos" ("não digo que a capacidade não importa. Certamente ajuda. Mas existe algo poderoso em perceber que nos subestimámos – que, de alguma maneira, a nossa mente confundiu falta de esforço com falta de capacidade. É por isso que quando as pessoas me perguntam o que eu gostaria de mudar na classe trabalhadora norte-americana, eu respondo: «A ideia de que as nossas escolhas não importam»", p.189). Diria que o alerta de Vance, bem situado, poderia colocar-se, mais rigorosamente, do seguinte modo: apesar de, face às desvantagens de partida e de todas as dificuldades para entrar no elevador social, a auto-condescendência (comunitária/pessoal) só jogará em "nosso" (o plural, aqui, refere-se à comunidade de Hillbilly) desfavor e, em assim sendo, "tenhamos" a coragem de "nos" olharmos ao espelho e "mudarmos" aspectos que são nucleares à "nossa" cultura/mentalidade, porque aí nenhum governo pode "ajudar-nos": "a morte da mãe de Brian foi mais uma 'carta má' numa 'mão' já de si péssima, mas ainda há muitas cartas para sair: a família pode conseguir dar-lhe a sensação de controlar o próprio destino, em vez de o incentivar a procurar refúgio em ressentimentos contra forças que estão fora do seu controlo; ele pode ser acolhido na comunidade de uma igreja que lhe ensine sobre o amor cristão, a família e o propósito de vida; e pode sofrer a influência positiva de pessoas que lhe deem apoio emocional e espiritual. Acredito que “nós”, saloios, somos as pessoas mais valentes à face da Terra. Facilmente empunhamos uma serra eléctrica contra aqueles que ofendem as nossas mães, ou fazemos outros engolirem umas cuecas para protegermos a honra das nossas irmãs. Mas será que somos valentes o suficiente para fazer o que precisa de ser feito para ajudar um rapaz como o Brian? Somos valentes o suficiente para construir uma igreja que faz com que jovens como eu se integrem no mundo em vez de se apartarem dele? Somos valentes o suficiente para nos vermos ao espelho e admitirmos que fazemos mal aos nossos filhos? Políticas públicas podem ajudar, mas não há governo que possa corrigir esses problemas por nós" (p.267). Um dos problemas desta comunidade do cinturão industrial prende-se com o não acreditar praticamente em nenhuma instituição do país, jornais incluídos, o que permite não apenas as fake news, mas todo o tipo de narrativa auto-justificativa para nada se mudar (no interior da comunidade). Todavia, em se perguntando o autor sobre para que se esforçará e trabalhará quem sabe que a seguir não terá recompensa, nem sairá do mesmo patamar, em que se encontrava, de novo, pode dizer-se, se regista a tensão: o elemento volitivo tem a sua pertinência – deve dar-se tudo, mesmo que se perca, ou que se saiba que a vitória será muito difícil -, mas tal também não permite apagar o elemento sistémico no que à mobilidade social diz respeito nos EUA. E como o retrato, neste livro, é bom e complexo, encontramos o Professor de Yale a dizer que só os alunos das melhores universidades deviam ali estar (ou seja, as grandes universidades públicas, como aquela em que Vance estivera, não valia nada) e o networking a contar mais do que qualquer outra coisa – qual enviar currículos, qual quê – e o forjar da endogamia, com todos os seus trejeitos, exposta em toda a sua feição, admitindo, em realidade, apenas uma improvável excepção (a do rapaz nascido em 1984, que viveu em Middletown e se formou na Ohio State). A tese central de J.D. Vance, em Hillbilly Elegy, pode, pois, ser sintetizada do seguinte modo: do ponto de vista político e ao nível cultural (o enfoque é colocado neste último âmbito, porque o livro é também uma carta de amor, por vezes desfeito e desesperado, à comunidade onde nasceu: "era assim o meu mundo: o mundo de comportamentos verdadeiramente irracionais. Gastamos tudo até ficarmos pobres. Compramos televisões de ecrã gigante e iPads. Os nossos filhos usam roupas boas graças a cartões de crédito com juros altos e empréstimos. Compramos casas de que não precisamos, refinanciando-as em troca de mais dinheiro para gastar, e depois declaramos falência e deixamo-las geralmente cheias de lixo. Poupar é para nós uma hostilidade. Gastamos para fingir que somos de uma classe superior. E quando a poeira assenta – quando a falência chega ou algum parente paga a fiança da nossa estupidez -, não sobra nada. Nada para pagar a faculdade dos filhos, nenhum investimento que nos possa manter, nenhum fundo de emergência se alguém perder o emprego. Sabemos que não devemos gastar assim. Às vezes censuramo-nos por isso, mas é assim mesmo que fazemos. As nossas casas estão sempre numa desordem total. Gritamos e berramos uns com os outros como se fôssemos um bando de arruaceiros num jogo de futebol. Pelo menos um membro da nossa família, consome drogas – às vezes, o pai, às vezes a mãe, às vezes, os dois. Em momentos particularmente stressantes, batemos uns nos outros, e à frente do resto da família, inclusive das crianças pequenas; boa parte das vezes, os vizinhos ouvem o que está a acontecer. Um dia mau é quando os vizinhos chamam a polícia para acabar com a confusão. Os nossos filhos vão para um centro de acolhimento, mas nunca ficam por muito tempo. Pedimos-lhes desculpa. E eles acreditam que estamos realmente arrependidos, e é verdade. Mas o nosso comportamento volta ao mesmo poucos dias depois. Não estudamos quando crianças, e não fazemos com que os nossos filhos estudem quando somos pais. Os nossos filhos têm más notas na escola. Podemos irritar-nos com eles, mas nunca lhe damos as ferramentas – como paz e sossego em casa – para vencerem. Mesmo os melhores e mais inteligentes provavelmente frequentarão uma universidade perto de casa, se sobreviverem ao cenário de guerra dos seus próprios lares. «Não me interessa se conseguires vaga na Universidade de Notre Dame», afirmamos. «Podes ter uma formação boa e barata num Community college». A ironia é que, para pessoas pobres como nós, a formação na Notre Dame é, ao mesmo tempo, a melhor e a mais barata. Optamos por não trabalhar quando, em vez disso, devíamos andar à procura de emprego. Às vezes, lá encontramos um, mas não ficamos empregados por muito tempo. (…) Dizemos que trabalhar arduamente tem valor, mas convencemo-nos a nós próprios de que não temos trabalho por causa de alguma injustiça evidente: Obama fechou as minas de carvão, ou os empregos foram todos para os chineses (…) Conversamos com os nossos filhos sobre responsabilidade, mas nunca damos o exemplo (…) A nossa alimentação e os nossos hábitos de exercício parecem feitos para nos mandarem para a cova mais cedo (…) Um estudo recente descobriu que a expectativa de vida da classe branca operária está a cair, algo raro entre os grupos étnicos nos Estados Unidos. Comemos bolos ao pequeno-almoço, Taco-Bell ao almoço, e McDonald's ao jantar. Raramente cozinhamos, apesar de ser mais barato e melhor para o corpo e a alma", pp.158-160) criem-se condições para não haver crianças sem grandes probabilidades/possibilidades de virem a singrar na vida. Mas um outro aspecto essencial, neste conjunto de memórias e reflexões, prende-se com aquilo que se poderia chamar uma reivindicação das instituições. Em particular, podemos dizer, duas: o Exército e a Igreja. Num mundo onde a anomia social dita regras, há aqui, também, um forte elogio a estas instituições. Vance termina o Secundário inseguro. Sem saber exatamente o que fazer. Sem auto-confiança para ingressar numa universidade (e assumir os riscos de um endividamento a ressarcir com um bom emprego futuro). Então, uma familiar com ascendente sobre ele, sugere os marines. E Vance, mesmo contra a vontade, as ordens, as sugestões e imprecações da avó acaba por ingressar nos marines. Aí, os valores de auto-controlo (fixa o episódio em que um superior hierárquico lhe atira um bolo da sobremesa para o chão, deliberadamente, e consegue não reagir, ao contrário do que sempre fizera na vida), disciplina (o levantar-se às 5h30 da manhã, diariamente) e superação (o recruta que se vê a conseguir alcançar, em termos físicos, o que julgara impossível) dar-lhe-ão um instrumento fundamental para o seu futuro: a noção de que consegue, de que tem controlo sobre a sua vida e destino, um sentimento de que é indestrutível. Mais: os marines aconselhá-lo-ão quanto a como e onde abrir uma conta bancária, a que empréstimo recorrer (atendendo a taxas de juro diferenciadas); evitarão que se perca por um BMW e fique por um utilitário mais moderado. De entre as suas funções naquele corpo militar, destacar-se-á a presença no Iraque (em plena guerra, na primeira década dos anos 2000, ainda que situando-se na parte de relações públicas, contactos com os media). A quando da sua presença na universidade, já depois de sair dos marines, Vance ouve um daqueles jovens convencidos pronunciar-se, de modo rotundo, sobre os militares no Iraque, a sua menor sofisticação intelectual quando comparada com os estudantes como ele. A Vance apetece-lhe desistir, de imediato, do ensino superior (aquela arrogância ignorante irritara-o). E se a alegação era o desrespeito dos militares pelos civis iraquianos, e se a ideia de impreparação e de elefantes em lojas de porcelana, que ignoravam e desrespeitavam, sistematicamente, uma cultura foi fazendo caminho, Vance responde: "ele explicou que os combatentes eram naturalmente menos inteligentes do que aqueles que (assim como ele) ingressavam na universidade. Isso era evidente, alegou ele, pela forma cruel como os soldados assassinavam e desrespeitavam os civis iraquianos. Era uma avaliação absurda – os meus amigos dos marines dividiam-se pelo espectro político e tinham opiniões divergentes sobre a guerra. Muitos deles eram liberais que não morriam de amores pelo nosso presidente – George W. Bush, naquela altura – e achavam que ele tinha sacrificado muito por muito pouco. Mas nenhum deles alguma vez disse um disparate tão despropositado. Enquanto o aluno falava sem parar, pensei nas sessões de treino intermináveis sobre como respeitar a cultura iraquiana – nunca mostrar a sola do sapato a ninguém, nunca se dirigir a uma mulher com trajes muçulmanos tradicionais sem antes falar com o parente do sexo masculino. Pensei na segurança que oferecemos a trabalhadores iraquianos e como explicávamos a todos cuidadosamente a importância da missão sem nunca lhes impor a nossa visão política (…) E ali estava aquele imbecil barbudo a dizer à turma que assassinamos pessoas por desporto. Senti vontade de abandonar a faculdade imediatamente" (pp.198-199). 
Quanto ao papel da Igreja, uma observação global, a partir da metanoia do progenitor: "o meu pai tinha mudado para melhor. Ele atribui isto a um envolvimento mais sério com a sua religião. Neste aspecto, o meu pai personificava um fenómeno que os cientistas sociais vêm observando há décadas: as pessoas religiosas são muito mais felizes. Quem vai regularmente à Igreja comete menos crimes, têm uma saúde melhor, vive mais, ganha mais dinheiro, abandona a escola com menos frequência, e termina a faculdade com mais frequência do que aqueles que não vão à Igreja. O economista do MIT Jonathan Gruber observou até que esta relação era casual: não se trata apenas do facto de que essas pessoas mais bem-sucedidas também vão à Igreja; a Igreja é que parece promover bons hábitos" (p.104; Vance cita o seguinte artigo de Linda Gorman: https://www.nber.org/digest/oct05/w11377.html). Apesar do que dizem as sondagens, irrealistas, neste caso, em função da pressão cultural para as respostas, a frequência sulista (nos EUA) à Igreja é baixa: "a justaposição é gritante: as instituições religiosas permanecem uma força positiva na vida das pessoas, mas numa parte do país afectada pelo declínio da indústria, pelo desemprego, pelas drogas e pelos lares desfeitos, a frequência à Igreja diminuiu muito. A Igreja do meu pai oferecia algo de que pessoas como eu precisavam desesperadamente. Para os alcoólatras, dava uma comunidade de apoio e um sentimento de que não lutavam contra o vício sozinhos. Para as mães grávidas, oferecia uma casa de apoio, formação profissional e aulas de cuidados infantis. Quando alguém precisava de emprego, os amigos da Igreja procuravam uma vaga ou davam o contacto de alguém. Quando o meu pai enfrentou dificuldades financeiras, a Igreja juntou-se e comprou um carro usado para a família. No mundo destruído que eu via à minha volta – e para as pessoas que enfrentavam dificuldades nesse mundo -, a religião oferecia uma assistência tangível para que a fé permanecesse" (pp.105-106).  O outro lado da religião do pai de Vance faz parte, no entanto, do desconcerto habitual: a defesa, fundamentalista, do criacionismo (com a rejeição da teoria da evolução), a profecia milenarista ("convenci-me a mim mesmo de que o mundo iria acabar em 2007", p.107) e Satã por todo o lado ("até deitei fora os meus CD dos Black Sabbath", p.107). A desvantagem da "teologia dele"(p.108) era, pois, "promover um certo isolamento do mundo. Eu não podia ouvir Eric Clapton na casa do meu pai – não porque as letras fossem impróprias, mas porque Eric Clapton era influenciado por forças demoníacas. Ouvira dizer, em jeito de brincadeira, que se tocássemos a canção dos Led Zeppelin «Stairway to Heaven» de trás para a frente, ouviríamos um feitiço maligno, mas um membro da igreja do meu pai falava sobre esse mito como se ele fosse realmente verdade (…) Entretanto, eu era um rapaz curioso, e quanto mais mergulhava na teologia evangélica, mais me sentia inclinado a desconfiar de muitos sectores da sociedade. O evolucionismo e a teoria do Big Bang tornaram-se ideologias a ser confrontadas, não teorias a ser compreendidas. Muitos dos sermões que ouvi dedicavam mais tempo a criticar outros cristãos do que qualquer outra coisa. As linhas da guerra teológica estavam estabelecidas, e as pessoas que se encontravam do outro lado não estavam apenas erradas a respeito da interpretação da Bíblia, elas eram de certa forma não cristãs. O meu tio Dan era o homem que eu mais admirava no mundo, mas quando ele falou da sua aceitação católica da evolução, a minha admiração ficou manchada de desconfiança. A minha nova fé pusera-me à espreita de heréticos. Bons amigos que interpretavam partes da Bíblia de modo diferente eram más influências. Até a mamaw perdeu a sua popularidade junto de mim, porque, para ela, as suas crenças religiosas não entravam em contradição com a sua preferência por Bill Clinton (…) Na minha nova Igreja, por outro lado, eu ouvia mais sobre o lobby gay e a guerra contra o Natal do que sobre qualquer traço particular de carácter que um cristão deveria desejar possuir (…) A moralidade era definida como a não-participação nesta ou naquela doença social: a agenda gay, a teoria da evolução, o liberalismo clintoniano, ou o sexo fora do casamento. A Igreja do meu pai exigia tão pouco de mim. Era fácil ser cristão. Os únicos ensinamentos afirmativos que me lembro de ter recebido daquela Igreja foram que eu não devia trair a minha esposa e não devia ter medo de ensinar a palavra de Deus aos outros. Então, planeei uma vida de monogamia e tentei converter outras pessoas, inclusive a minha professora de ciências do sétimo ano, que era muçulmana. O mundo caminhava na direcção da corrupção moral – rumo a Gomorra. O Juízo Final chegaria em breve. Imagens apocalípticas enchiam os sermões semanais e os livros Left Behind (…) As pessoas discutiam se o Anticristo estava vivo na Terra e, se assim fosse, qual dos líderes mundiais ele podia ser. Houve alguém que me disse que esperava que eu me casasse com uma rapariga muito bonita se o Senhor não chegasse antes de eu ter idade para me casar. O Fim dos Tempos era o término natural para uma cultura que escorregava rapidamente na direcção do abismo. Outros autores notaram as péssimas taxas de retenção das Igrejas evangélicas e culparam precisamente essa espécie de teologia pelo seu declínio. Não percebi isso quando era criança. E nem percebi que as ideias religiosas que desenvolvi durante os meus primeiros anos com o meu pai lançavam as sementes para uma rejeição total da fé cristã "(pp.108-111). Já adulto, maduro, depois da passagem pelos marines, a Ohio State, Yale, vários empregos tidos, formado em Direito, porém, J.D.Vance retoma a fé cristã e, o mais interessante, vincula-a a uma procura de compreender a mãe e não (apenas) julgá-la ("eu tinha jurado a mim mesmo que nunca mais ajudaria a minha mãe, mas a pessoa que tinha feito aquele juramento tinha mudado. Eu estava a explorar, ainda que de maneira confusa, a fé cristã que havia descartado anos antes. Tinha-me apercebido, pela primeira vez, da extensão das feridas emocionais de infância da minha mãe. E cheguei à conclusão de que essas feridas nunca se curam, nem mesmo por mim. Então, quando descobri que a minha mãe estava em apuros, não a insultei baixinho e desliguei o telefone. Ofereci ajuda", p.249). E, como vimos, ele percebe como a Igreja, e os ensinamentos cristãos sobre o amor seriam/são/serão, ainda, contributos essenciais na sua comunidade para forjar uma personalidade sadia (nos mais novos). J.D. Vance, após a passagem pelos marines, ganhou uma auto-confiança poderosa que o ajudou a quebrar barreiras e transpor a classe social de origem. O relato poderia ficar-se por um final feliz, de quem passou para o outro lado, abandonou maus hábitos, trabalhou e passou a ter uma vida boa. Mas havia pesadelos para contar; fugas ao relacionamento com os outros para revelar, explosões e fins de namoro que só não ocorreram porque Usha, a mulher, veio em seu resgate. O pesadelo regressa, como o monstro da infância que se impõe vigiar, porque, possivelmente, nunca será morto (definitivamente). 
Vance teve um Natal sempre recheado de prendas, mesmo sem saber como tal era possível (face aos recursos existentes na família); as pessoas de que dependeu não tinham obrigação de o ter ajudado (p.116); sendo uma velha malvada, nunca a avó lhe bateu, ao contrário do que se passava em casa com a mãe (que lhe oferecia sucessivos "pais" que de imediato deixavam de o ser); com os marines, viu a incontida e irrepetível alegria de um menino quando lhe ofereceu uma borracha – e sentiu-se, afinal, um privilegiado, nascido no "melhor país do mundo" (algo que a pobreza, como nunca tinha visto, no Haiti, acentuou). De resto, se algo caracteriza a sua comunidade (e a sua avó personificando-a) era ter "dois deuses: Jesus Cristo e os EUA" (p.202).
De aí que seja grave a presente alienação: "não podemos confiar nos noticiários da noite. Não podemos confiar nos nossos políticos. As nossas universidades – as portas para uma vida melhor – estão contra nós. Não conseguimos encontrar emprego. Não se pode acreditar nessas coisas e participar significativamente da sociedade. Psicólogos sociais demonstraram que a crença colectiva é um poderoso motivador para o desempenho (…) É óbvio o motivo: se se acredita que o trabalho árduo compensa, trabalha-se arduamente; se se acha que é difícil vencer mesmo quando se tenta, então para quê tentar?" (p.206).
Por que é que muitas destas pessoas não se reviam em Barack Obama? "O presidente parece ser de outro planeta para muitos dos habitantes de Middletown por motivos que não têm nada a ver com a cor da pele. Lembre-se que nenhum dos meus amigos da escola estudou numa das melhores universidades do país. Barack Obama estudou em duas, e foi muito bem-sucedido em ambas. Ele é brilhante, rico e fala como um professor de Direito Constitucional – e ele é, efectivamente, professor de Direito Constitucional. Nada nele se parece com as pessoas que eu admirava quando cresci: o sotaque dele – limpo, perfeito, neutro – parece estrangeiro; as suas credenciais são tão impressionantes que chegam a ser assustadoras; ele construiu uma vida em Chicago, uma metrópole; e transmite uma confiança que advém do facto de saber que a meritocracia americana moderna foi feita à sua medida. Claro, Obama superou a adversidade por mérito próprio – a mesma adversidade que nos é familiar -, mas isso foi antes de qualquer um de nós o conhecer. O presidente Obama entrou em cena justamente quando tantas pessoas da minha comunidade começaram a acreditar que a meritocracia americana moderna não tinha sido feita para elas. Sabemos que a vida não nos corre bem. Vemos isso todos os dias: nos obituários de adolescentes que omitem a causa da morte (leia-se nas entrelinhas, overdose), nos gandulos com quem vemos as nossas filhas perderem tempo. Barack Obama atinge o cerne das nossas mais profundas inseguranças. Ele é um bom pai, enquanto muitos de nós não somos. Ele vai trabalhar de fato, enquanto nós usamos os macacões, se tivermos sorte em ter um emprego. A esposa dele alerta-nos para não darmos certas comidas aos nossos filhos, e nós odiamo-la por causa disso – não por acharmos que ela está errada, mas por sabermos que tem razão" (pp.203-204). Embora aqui, neste livro, o autor o não tenha escrito, dado o carácter pedagógico que sem dúvida procura inculcar no escrito sobre e para a sua comunidade de nascença, Vance dirá, depois, que os políticos podiam e deviam, a bem do cimento social, fazer um esforço de vinculação empática/emocional com populações de que de facto estão muito afastadas e um modo de vida que lhes é muito longínquo (da fala à alimentação, do vestuário ao desemprego, do tipo de família aos problemas de álcool e droga, passando pelos estabelecimento de ensino frequentado, os cocktails e o networking). Há um abismo, um muro que separa muitos americanos: "outra lição é que não são apenas as nossas próprias comunidades que reforçam a atitude do estranho, são os lugares e as pessoas que a ascensão social coloca em contacto connosco – como o professor que sugeriu que a Faculdade de Direito de Yale não deveria aceitar candidatos de universidades estaduais sem prestígio. Não há como quantificar o quanto essas atitudes afectam a classe trabalhadora. Sabemos que americanos de classe trabalhadora não apenas têm uma menor probabilidade de subir a escada económica, mas também são mais susceptíveis de cair mesmo depois de chegarem ao topo. Imagino que o desconforto que sentem ao deixarem tanto da sua identidade para trás desempenhe pelo menos um pequeno papel nesse problema. Então, a forma pela qual as classes superiores podem promover a ascensão social é não só promovendo políticas sociais mais sábias, mas abrindo os seus corações e as mentes para novatos que não se encaixam perfeitamente" (p.218).
Os pobres (nos EUA) não vestem pijama – "dormimos de cuecas ou mesmo calças de ganga" (p.261). E os saloios estão, na escala social, mais perto dos negros do que dos brancos (p.38). Ao pequeno almoço, pode comer-se ovos mexidos, presunto, batatas fritas e bolachas; ao almoço, sanduíches de mortadela e ao jantar sopa de feijão e milho (p.26). Mudar de estatuto é também mudar de hábitos – da alimentação cuidada, às viagens e à frequência dos concertos de música clássica.
Para a inserção no elevador social, as expectativas desempenham um papel muito importante: "A tua geração vai ganhar a vida com a cabeça, não com as mãos – disse-me ele [o avô] uma vez. A única carreira aceitável na Armco era a de engenheiro, não a de operário na fundição. Muitos outros pais e avós de Middletown devem ter sentido a mesma coisa: para eles, o Sonho Americano precisava de um salto em frente. O trabalho manual era honrado, mas era o trabalho da geração anterior – nós tínhamos de fazer algo diferente. Ascender era seguir em frente. Isso exigia ir para a universidade. E, no entanto, não existia a sensação de que não conseguir frequentar a universidade traria vergonha ou qualquer outra consequência. A mensagem não era explícita; os professores não nos diziam que éramos demasiado burros ou pobres para o conseguir. Entretanto, ela pairava sobre nós, como o ar que respirávamos: ninguém na nossa família tinha ido para a universidade; amigos e irmãos mais velhos contentavam-se em ficar em Middletown, não importava qual fosse a perspectiva de carreira que houvesse lá; nós não conhecíamos ninguém numa universidade respeitada noutro estado; e toda a gente conhecia pelo menos um adulto jovem que estava subempregado ou desempregado. Em Middletown, 20% dos alunos de escolas públicas de ensino médio que entram na universidade não chegam a licenciar-se. A maioria não se forma na universidade. Praticamente ninguém irá para uma universidade noutro estado. Os estudantes não esperam muito deles mesmos, porque as pessoas à sua volta também não esperam muito deles. Muitos pais aceitam esse fenómeno. Não me lembro de ter sido repreendido por tirar uma nota má até que a mamaw começou a interessar-se pelos meus estudos no ensino Secundário. Quando a minha irmã ou eu tínhamos dificuldades na escola, eu ouvia coisas do tipo: «Bem, talvez ela não seja muito boa com fracções», ou «O J.D. está mais vocacionado para os números, por isso não me preocuparia com o teste de ortografia»" (pp.66-67).
O Secundário, vivido sozinho com a avó, foi, neste contexto, determinante para Vance: "o professor Selby [e há sempre um professor particularmente inspirador na história, e este é o tal] sugeria (mas não exigia) que os seus alunos tivessem calculadoras científicas avançadas – o modelo 89 da Texas Instruments era o mais recente e melhor. Não tínhamos telemóveis, nem roupas caras, mas a mamaw certificou-se de que eu tivesse uma daquelas calculadoras. Isso ensinou-me uma lição importante sobre os valores da mamaw e fez com que eu me empenhasse na escola como nunca antes tinha feito. Se a mamaw podia gastar 180 dólares numa calculadora científica – ela não me deixou gastar um cêntimo do meu dinheiro -, então eu tinha de levar os estudos mais a sério. Eu devia-lhe isso, e ela lembrava-mo constantemente.
– Já acabaste o trabalho do professor Selby?
– Não, mamaw, ainda não.
– É melhor começares já. Não gastei uma pipa de massa naquele computadorzinho para ficares a coçar os tomates o dia todo.
Aqueles três anos com a mamaw – ininterruptos e sozinho – salvaram-me. Não notei a relação de causa e efeito da mudança, como viver com ela transformou a minha vida. Não percebi que as minhas notas começaram a melhorar imediatamente depois de me mudar para casa dela. E não tinha como saber que estava a fazer amigos para a vida toda" (pp.149-150).
Vance, já empregado, ganhando algum com os marines, irá ajudar a avó com dinheiro para os seus medicamentos e alimentação [além da avó, é especialíssima a relação que estabelece com a (meia) irmã Lindsay que adora; todos os restantes meio-irmãos são como que ignorados]. E, mais tarde, dispõe-se a contrair uma dívida de 200 mil dólares para ficar em Yale (faculdade onde estudará o filho de Tony Blair, político que surge ali a dar uma conferência).
Todavia, surpreendentemente, verificará que "o apoio financeiro que Yale oferecia suplantou as minhas melhores expectativas. O meu primeiro ano foi quase todo de graça. Não por causa de nada que eu tenha feito ou merecido – foi porque eu era um dos alunos mais pobres da escola. Yale oferecia dezenas de milhares de dólares em apoios por necessidade. Pela primeira vez, ser tão pobre era uma coisa boa. Yale era não apenas a instituição de ensino com que eu sonhava, era também a opção mais barata que eu tinha. O New York Times noticiou recentemente que as escolas mais caras são paradoxalmente mais baratas para alunos de baixos rendimentos. Por exemplo, um aluno cujos pais ganham 30 mil dólares por ano – não é muito dinheiro, mas essa quantia não permite que a pessoa seja qualificada como pobre; esse aluno pagaria dez mil dólares num dos campus menos prestigiados da Universidade do Wisconsin, mas pagaria seis mil no campus principal da faculdade de Madison. Em Harvard, o aluno pagaria apenas cerca de 1300 dólares, apesar de as propinas geralmente ascenderem a 40 mil dólares" (p.211). Mas, "claro, jovens como eu não sabem disso" (p.211).

Um livro intenso, este de J.D.Vance, de uma grande vivacidade, que alternando nas pistas entre o amor/ódio para com as origens – como num policial surpreendente – desemboca em uma elaboração que, mais do que julgar, procura compreender, apontando lugares a mudar, comprometendo-se com a dificuldade de rótulos e soluções e que joga o jogo de quem se assume vencedor repleto de cicatrizes e falhas que vigia de perto – mas sempre prontas a explodir -, afirmando, pois, a sua vulnerabilidade, num sedutor encontro com o saloio que sabe que só singrou na vida por causa dos seus mamaw e papaw nunca o seu nome é self made man, num agradecimento sensível e inteligente a quem o segurou – e outros mentores, familiares, amigos ("em cada nível da minha vida e em cada ambiente, encontrei familiares, mentores e amigos que me apoiaram e me ajudaram. Mas pergunto-me frequentemente: onde estaria eu sem eles?", p.265), não enjeitando, contudo, nunca a responsabilidade individual e comunitária – e aí concentrando, diria, a sua atenção.