O fosso


Cada vez mais se alarga o fosso entre o povo de todas as classes e convicções e os políticos.


1. A pandemia cresce e os sinais de preocupação multiplicam-se. Diariamente ficam mais evidentes as falhas e as incompetências organizacionais. Boa parte delas resultam da circunstância de o país ter ido a banhos em julho, agosto e setembro, em vez de se preparar para o que, obviamente, aí vinha. Vale, até ver, o facto de o surto parecer menos agressivo e atacar gente saudável e mais nova, limitando o número de mortes em relação ao de infetados. Mesmo assim, a capacidade hospitalar está a esgotar-se. Já os célebres ventiladores, não se sabe onde estão e faltam quadros qualificados para os operacionalizar. Tal como Trump e Bolsonaro, os políticos europeus pensam agora que a economia não pode parar. Tentam amortecer o avanço da pandemia com ações pontuais, de forma a evitar uma derrocada social. António Costa recorreu a uma estratégia de ação psicológica, intimidando quem não puser a StayAway Covid no telemóvel. Sabe bem que é ilegal, mas aposta no susto e no medo para alterar comportamentos laxistas. Não conseguiu sequer convencer a ministra Alexandra Leitão, que numa entrevista divergiu do Governo numa questão tão supostamente substancial, sem se demitir. Costa transfere a culpa toda para os cidadãos e isenta-se a si, ao Governo, às autoridades de saúde, à Segurança Social, às autarquias, às polícias de responsabilidades. Dir-se-á que o panorama é pior noutros países. É verdade. Mas não é menos verdade que até na evolução da pandemia andamos atrasados.

2. O fosso entre as preocupações das pessoas comuns de diferentes convicções e origens sociais e a classe política é cada vez maior. Este afastamento não tem apenas a ver com o tipo de preocupações de cada uma das partes. Um dos motivos reside na circunstância de estar adquirida a ideia de que os políticos se tornaram uma casta superior. Vivem numa espécie de bolha onde são protegidos e dispõem de cuidados especiais, quase comparáveis aos craques do futebol. Saber que numas horas se testaram membros do Conselho do Estado e do Governo à covid-19, numa operação-relâmpago, demonstra essa realidade. A uns mandam para casa esperar para ver. A outros remetem para uma fila enorme. A outros ainda não dão resposta nenhuma e não os testam, apesar de trabalharem em sítios de risco. A falta de confiança concreta dos governados nos governantes é maior que nunca. Extrema-direita e extrema-esquerda aproveitam-se destas evidências e da corrupção para crescer com discursos populistas que têm por base uma realidade objetiva. Noutro contexto, verifica-se que há uma nova reavaliação positiva por parte da população relativamente a políticos que se distanciaram de honrarias, negócios e cargos e fazem vidas normais. Há dois casos paradigmáticos: António José Seguro e Pedro Passos Coelho – sobretudo este último, pela exposição passada e pelo respeito que suscita a sua vida familiar, com as dificuldades que se conhecem. Os portugueses comuns gostam dos políticos que não fazem alarde nem vivem de proclamações demagógicas. Mesmo achando que nem sempre governaram bem e que fizeram erros, valorizam a sobriedade, a contenção e a seriedade.

3. Não vale a pena andar com angústias: o Orçamento do Estado vai passar. O suspense faz parte da estratégia política de cada um para obter ganhos clientelares. Rui Rio é um corredor de fundo e reserva a sua posição para o mais tarde possível. Isto pode permitir-lhe eventualmente votar contra o OE e dar a ideia de que lidera a oposição. No entanto, não pode precipitar-se. Tem de saber de antemão que a aprovação está garantida à esquerda para falar. De outro modo, terá de dar mais uma mão a António Costa, através de uma abstenção ou até de um voto favorável. Vou devagar porque tenho pressa sempre foi a técnica de Rui Rio na política. Não se tem dado mal com ela, embora as sondagens mais recentes não mostrem crescimento. Quanto ao Orçamento propriamente dito, a ideia que fica é que nasceu ao contrário. Primeiro viu-se o que o Estado precisa e depois avançou-se para cima dos pagantes. E se for preciso mais haverá uns retificativos.

4. Não há dia em que António Costa não dê uma grande entrevista. Isto sem contar com conferências de imprensa ou aparições rápidas com umas palavrinhas aos jornalistas para um recado ao país, cheio de bonomia ou com um ar austero, consoante a necessidade. Mesmo assim, parece não chegar. Há dias deu uma entrevista, no decorrer de uma iniciativa do PS, à consagrada jornalista Maria Elisa. A SIC fartou-se de passar excertos do trabalho. Foi a peça mais longa do jornal. Imagine-se isso no tempo de Passos Coelho com um familiar dele à frente da direção do grupo que detém a televisão? O que havia de ser? Mas nada surpreende numa comunicação social em que há jornais audiovisuais que se alimentam regularmente de podcasts fornecidos pelos partidos e de supostos factos relatados por redes sociais altamente manipuladas. É o que faz a falência dos média.

5. A decapitação de um professor francês por um terrorista e extremista islâmico mostra bem que por mais manifestações “Je Suis” que se façam, o extremismo religioso e político está impregnado nas sociedades ocidentais democráticas, destruindo-as por dentro. A “République” que os franceses proclamam não se mostrou capaz de criar uma convivência tolerante. Há razões sociais, políticas, históricas e, naturalmente, culturais já insanáveis. Não se vislumbram soluções. O quadro francês estende-se a muitos outros países europeus. A fraqueza do Estado perante os abusos extremistas e a política de tudo absorver permitem o desenvolvimento de movimentos e Governos nacionalistas, como na Hungria, na Polónia, na Rússia e na Bielorrússia. Os Estados democráticos foram apanhados pela sua tolerância e perdem a sua identidade, julgando a História à luz dos conceitos de hoje. Há sociedades ocidentais que são barris de pólvora que podem explodir de repente perante tentativas de subversão dos seus valores fundacionais. Em Roma sê romano não era propriamente uma expressão absurda.

 

Escreve à quarta-feira