No passado dia 1 de Setembro foi apresentada com pompa e circunstância a aplicação StayAway Covid, tendo o primeiro-ministro garantido na altura que as pessoas não deviam ter receio da mesma, porque a instalação dessa aplicação não seria obrigatória, mas apenas voluntária, quer no descarregar da aplicação, quer na inserção do código em caso de contaminação. Passou apenas um mês e meio sobre essa apresentação e o Governo já propôs à Assembleia da República uma lei a instituir a obrigatoriedade da utilização da StayAway Covid. Trata-se de uma medida extremamente grave, não apenas por pôr em causa uma garantia pública do Governo, mas também por lesar profundamente os direitos fundamentais dos cidadãos.
Por acaso, o Conselho da Europa publicou no passado dia 12 de Outubro o seu relatório “Digital Solutions to Fight Covid-19” (https://rm.coe.int/report-dp-2020-en/16809fe49c), onde salienta que as medidas digitais de combate à pandemia devem ter base na lei, respeitar a essência dos direitos fundamentais e das liberdades e ser necessárias e proporcionais numa sociedade democrática. Para esse efeito, o relatório exige que estas medidas tenham um prazo-limite; sejam restritas a um fim específico; vejam a sua proporcionalidade constantemente examinada, devendo ser retiradas quando não haja evidência dos seus benefícios; e sejam estabelecidas em cooperação permanente com a autoridade nacional de protecção de dados.
A proposta de lei 62-xiv, apresentada pelo Governo, falha todos estes pressupostos. Na verdade, limita-se a referir, no seu art.o 4.o, n.o 1, que “é obrigatória no contexto laboral ou equiparado, escolar ou académico, a utilização da aplicação StayAway Covid pelos possuidores de equipamento que o permita”, acrescentando o n.o 2 que tal abrange “em especial os trabalhadores em funções públicas, funcionários e agentes da Administração Pública, incluindo o setor empresarial do Estado, regional e local, profissionais das Forças Armadas e de forças de segurança”. Institui-se assim uma obrigação de instalação de uma aplicação nos telemóveis, sem qualquer prazo-limite ou fim específico e com critérios puramente arbitrários. Porquê estabelecer essa obrigatoriedade no contexto laboral ou equiparado, escolar ou académico, e não no contexto da actividade política, viagens ou congressos? E como se pode admitir uma obrigação “especial” dos trabalhadores em funções públicas que os discrimina perante os restantes trabalhadores? E como é possível limitar a obrigatoriedade aos possuidores de equipamento que permita a aplicação, ficando todos os outros dispensados da mesma?
O art.o 4.o, n.o 3 da proposta prevê que o cidadão que tenha um caso confirmado é obrigado a inserir na aplicação “o código de legitimação pseudoaleatório previsto neste sistema” (sic). O cidadão fica assim obrigado a partilhar publicamente um dado de saúde, que deveria ser objecto de protecção legal como dado sensível, o qual determina a activação de avisos noutros telemóveis e que facilmente permitirá a sua identificação como infectado por outros, dado que as pessoas, actualmente, não convivem com muita gente.
O art.o 5.o da proposta prevê que “a fiscalização do cumprimento das obrigações previstas na presente lei compete à Guarda Nacional Republicana, à Polícia de Segurança Pública, à Polícia Marítima e às polícias municipais”. Prevê-se assim que qualquer polícia possa solicitar aos cidadãos o seu telemóvel, em clara violação do art.o 34.o, n.o 4 da Constituição, que proíbe “toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”.
E, finalmente, o art.o 6.o da proposta manda sancionar o incumprimento destes deveres com coima até 500 euros. Com propostas destas, e com a multiplicidade de coimas que poderão ser aplicadas, não admira que o Orçamento do Estado preveja um aumento de 73%, ou seja, 180 milhões de euros, em multas e outras penalidades.
O primeiro-ministro justificou esta proposta para não ter de aplicar medidas piores. Não se podem, porém, admitir cedências em relação aos princípios básicos do Estado de direito com o argumento de que assim se evitam outras medidas. Não sei se esta aplicação permite afastar (stay away) a covid. Mas garanto que nos afasta do Estado de direito (rule of law).
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990