A linguagem secreta dos humanos e dos robôs

A linguagem secreta dos humanos e dos robôs


Existe uma linguagem secreta, não verbal, mais primitiva, que nos permite também trocar informação quando interagimos uns com os outros.


Os seres humanos são animais com um pendor social tão forte que a pressão evolutiva levou ao desenvolvimento da linguagem que nos diferencia de todas as outras espécies existentes. Através da sua estrutura complexa, podemos comunicar conceitos e ideias variados e abstratos e coordenar as nossas (inter)ações.

É muito menos conhecido que existe uma linguagem secreta, não verbal, mais primitiva, e que nos permite também trocar informação quando interagimos uns com os outros. Do ponto de vista neurocientífico, esta linguagem pode estar ancorada nos “neurónios-espelho”, descobertos no córtex pré-motor de macacos1. Estes neurónios estão ativos não só quando o animal executa algumas ações específicas, como seria de esperar de neurónios de uma região motora, mas também quando este observa ações semelhantes executadas por outro indivíduo. A partilha de um corpo e de um repertório motor semelhantes faz com que a observação das ações de outro indivíduo ative os nossos circuitos neuronais responsáveis por comandar a execução dessas ações, permitindo o “reconhecimento” das ações do nosso interlocutor. O nosso cérebro coloca-nos no “lugar” do interlocutor e imagina o nosso corpo a executar aquelas mesmas ações. Por facilitarem o reconhecimento das ações executadas por outros indivíduos, os neurónios-espelho poderão ter sido a primeira forma de comunicação (não verbal), precedendo o aparecimento da linguagem falada. Neurónios com comportamento semelhante foram descobertos na zona de Broca2 do cérebro humano, envolvida na produção de fala.

Encontramos outro exemplo da linguagem secreta no controlo motor humano. Quando queremos agarrar um objeto, começamos por direcionar o nosso olhar nessa direção e, posteriormente, orientamos a cabeça, o tronco e, finalmente, o braço3 nessa direção. Os movimentos oculares indiciam antecipadamente a nossa intenção! A capacidade de “lermos” a direção do olhar de outros seres humanos e de antevermos as suas ações pode justificar evolutivamente a fisiologia dos nossos olhos que, contrariamente ao que sucede com vários primatas não humanos, tem uma íris central rodeada por uma parte (esclera) branca que facilita a perceção da direção do olhar4. Estes exemplos mostram a importância e relevância da linguagem secreta para a interação humana e a necessidade de dotar os robôs com a mesma capacidade de leitura, antevisão e expressão nesta linguagem, por forma a interagirem de forma natural com seres humanos.

No Instituto de Sistemas e Robótica| Lisboa – LARSyS do Técnico, investigamos a aprendizagem, perceção e cognição humanas, incluindo métodos para equipar os robôs com a linguagem secreta da interação. Participámos no desenvolvimento do robô humanoide iCub, o mais sofisticado do mundo em termos de graus de movimento, que é a nossa plataforma experimental principal e faz parte da infraestrutura de investigação Robotics, Brain and Cognition, integrada no Roteiro Nacional de Infraestruturas de Investigação, financiado pela FCT.

Assistimos hoje a um desenvolvimento científico e tecnológico acelerado da robótica e da inteligência artificial, com avanços disruptivos em áreas como aprendizagem, redes neuronais profundas, processamento de fala, visão artificial ou data science. O previsível impacte destas tecnologias em áreas tão diversas como a saúde, defesa, banca, indústria ou entretenimento levou a investimentos maciços na Europa5, EUA6 e China7, ou dos gigantes Facebook, Amazon, Apple, Microsoft e Google (Alphabet).

Estes sistemas inteligentes começaram já a entrar nas nossas vidas de forma visível (assistentes digitais, aspiradores, robôs assistentes, carros autónomos) e invisível (sistemas de recomendação no comércio online, redes sociais, novos diagnósticos clínicos). Com a quarta revolução industrial chegou a hora de os robôs, tendo vivido segregados dos humanos durante cerca de meio século8, finalmente partilharem espaços, tarefas e colaborarem com seres humanos, com enormes desafios do ponto de vista da segurança e da interação, pelo que a linguagem secreta terá um papel central.

O uso da robótica e da inteligência artificial para modelar certas características humanas permitirá não só desenhar sistemas capazes de interagir connosco de forma mais natural, mas também compreender melhor alguns aspetos da essência do que nos faz ser… “humanos”.

 

1 Rizzolatti G, Fadiga L, Fogassi L, Gallese V. 1996a. Premotor cortex and the recognition of motor actions. Cogn. Brain Res. 3:131-41

2 Rizzolatti, G., & Arbib, M. A. (1998). Language within our grasp. Trends in Neurosciences, 21, 188–194.

3 Land, M. F. Predictable eye-head coordination during driving. Nature 359, 318–320 (1992).

4 Kobayashi, H., & Kohshima, S. (2001). Unique morphology of the human eye and its adaptive meaning: comparative studies on external morphology of the primate eye. Journal of Human Evolution, 40(5), 419–435.

5 EU Policy on AI, https://ec.europa.eu/digital-single-market/en/artificial-intelligence

6 “The American AI Initiative: The U.S. strategy for leadership in artificial intelligence” https://oecd.ai/ wonk/the-american-ai-initiative-the-u-s-strategy-for-leadership-in-rtificial-intelligence

7 Will China lead the world in AI by 2030? https://www.nature.com/articles

/d41586-019-02360-7

8 O primeiro robô industrial foi produzido pela empresa Unimation nos EUA em 1956.

 

Professor do Instituto Superior Técnico, presidente do Instituto de Sistemas e Robótica Lisboa, LARSyS -Instituto Superior Técnico