A leitura da proposta de lei 62/xiv, aprovada pelo Governo esta quarta-feira e nessa mesma noite apresentada à Assembleia da República, transporta-nos para um universo distópico, pós-apocalíptico, onde nada é o que parece, as garantias dos cidadãos desapareceram, os direitos fundamentais são violados e a referência ao “Big Brother is watching you” convoca pesadelos maiores do que Teresa Guilherme.
A proposta de lei, a ser discutida na próxima semana pelos representantes eleitos do povo português, pretende tornar obrigatória, em determinadas circunstâncias, a utilização da “aplicação StayAway Covid”. As circunstâncias são identificadas no n.o 1 do art.o 3.o da proposta como sendo o “contexto laboral ou equiparado, escolar e académico”. Se considerarmos que o “contexto” só faz sentido de forma biunívoca, o “contexto laboral” de uns implica a sujeição à aplicação de todos os que com eles se relacionem no referido contexto. Onde haja trabalhadores, escolarizados ou académicos haverá obrigação de utilização da aplicação mesmo que não integrem, naquela circunstância, a categoria dos trabalhadores, escolarizados ou académicos. Dificilmente se consegue descortinar um espaço físico onde existam seres humanos e não coexista um dos três contextos referidos. Este amplíssimo critério é sobremaneira dilatado por um tipo aberto por via do qualificativo “ou equiparado”. A certeza e a segurança jurídicas, sempre desejáveis em qualquer norma, em particular se restritiva de direitos, ficam fortemente condicionadas pela falta de parâmetros que permitam aferir da equiparação (os estágios profissionais são equiparados? É-o a formação profissional de desempregados?).
A proposta de lei manda fiscalizar o cumprimento da obrigação de instalar a “aplicação”, cometendo tal tarefa à Guarda Nacional Republicana, à Polícia de Segurança Pública, à Polícia Marítima e às polícias municipais. Do rol das interpelações policiais passará a constar a frase “faculta-me o seu telemóvel?”. Esta ordem, ao violar o direito à privacidade e à protecção dos dados pessoais, é ilícita e só será excluída a responsabilidade do funcionário ou agente policial que dela tiver reclamado ou tiver exigido a sua confirmação por escrito. Para respeitar o regime da responsabilidade dos funcionários e agentes, fixado pelo art.o 271.o da Constituição, será preciso que os mesmos se dediquem em exclusivo a colher, junto dos superiores hierárquicos, as autorizações para praticarem actos ilícitos, admitindo que os superiores estão disponíveis para virem a ser responsabilizados.
Do ponto de vista dos parâmetros constitucionais que permitem a restrição de direitos, a obrigação de utilização da “aplicação” não é necessária, não é adequada e não é proporcional. As supostas garantias de anonimato dependem da recolha de dados de geolocalização por empresas – sempre as mesmas – que têm feito fortuna por conta do tráfico de dados pessoais. A confiança que nos merecem é nenhuma. Ver o Estado português associado, por via da tentativa de legislar no sentido de estabelecer uma obrigação de violação da privacidade, a este tipo de práticas é particularmente assustador.
Faça o leitor o seguinte exercício: consegue identificar quais os Estados que tornaram obrigatória a utilização de “aplicações” que transmitem informações sobre a localização e o comportamento dos cidadãos? E gostaria de viver em permanência num desses Estados que tanto se preocupam com a sua saúde e bem-estar?
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990