Entre polvos monges

Entre polvos monges


Aprendemos tais manhas desde tenra idade que nos tornamos perigosos.


Um passeio pela Ericeira é o bastante para que se tenha um momento de inspiração. Pelo horizonte distante, pela brisa que se sente, pela rebentação das ondas do mar, pelo pôr do sol, pela gente que passa.

Por esta altura fazem-se os últimos preparativos para o Festival do Polvo, já anunciado por todo o lado como cartão-de-visita para quem ali passe.

Lembrei-me, por isso, do Sermão de Santo António aos Peixes, o famoso texto do P.e António Vieira do qual já tive a oportunidade de falar numa das crónicas anteriores. Se a memória não me falha e a internet não me engana, diz o autor: “E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (…) o dito polvo é o maior traidor do mar”. Compara assim o religioso a aparência do polvo com a serenidade e a confiança que nos deve fazer passar um monge.

A conhecida abordagem de Vieira sobre os homens está sempre na ordem do dia, tanto hoje como há 400 anos. Vivendo para o absoluto, não viveu para o poder. Separou as águas e o trigo do joio. Deu murros na mesa e defendeu os mais fracos. Esteve à frente do seu tempo, como estão tantos outros quando lutam contra a maré enfrentando as maiorias. Esta atitude irreverente isolou-o e impede-o de vir a ser canonizado. É pena.

Voltando ao polvo: também eu tenho razões de queixa deste desgraçado. A verdade é que, quando o colocamos na panela, nunca sabemos com o que podemos contar, já que encolhe de tal maneira que chega a parecer vingança. E pode ser – pela maldade que lhe fizemos.

A capacidade de mudar de cor, ao assumir os tons do ambiente que o rodeia, faz dele um dos mais hábeis predadores e, uma vez mais, em tudo se assemelha à forma de ser e de atuar do ser humano. Não é que tenhamos predadores à nossa volta que nos queiram comer. Desses, de forma geral, já nos fomos libertando, mas a constante lei do mais apto torna-nos, por vezes, verdadeiros polvos da terra.

Aprendemos tais manhas desde tenra idade que nos tornamos perigosos e o pior de tudo é que não paramos de adquirir novas capacidades (esquemas) até à velhice. Sobrevivemos em vez de vivermos. Essa parece ser a questão que nos leva a viver como predadores.

Além da inteligência que lhes é atribuída, vários mergulhadores relatam momentos de interação com polvos que em tudo se assemelham a uma brincadeira. Deste modo, nós, como seres dotados de inteligência, podemos entender que o polvo, em si, não faz mal a ninguém. Pode até ser um bom companheiro que, naturalmente, reage a quem tenta fazer-lhe mal e que também se alimenta, o que é normal.

Em suma, não somos maus na nossa natureza, tal como mau este molusco não é. Defendemo-nos simplesmente daquilo que nos assusta ou nos quer atacar. Quando formos capazes de perder o medo e nos tornarmos seguros, talvez seja dado um passo significativo no que toca aos valores e integridade pois, afinal, não é o polvo que se apresenta como monge, somos nós que nos apresentamos como polvos.

 

Professor e investigador