A utilização obrigatória da aplicação StayAway Covid, que permite rastrear através do telemóvel, de forma rápida, as redes de contágio por covid-19, tem sido alvo de debate e está longe de reunir consenso. E, no que toca aos direitos constitucionais, não é exceção: há quem defenda que se trata de uma medida “aceitável” por parte do Governo, tendo em conta a situação de estado de calamidade em que Portugal se encontra, mas, por outro lado, existe também quem a considere “inconstitucional” e até “discriminatória”.
O Governo entregou na quarta-feira, no Parlamento, a lei que torna obrigatório o uso da aplicação “em contexto laboral ou equiparado, escolar e académico”, sob pena de um regime de multas entre os 100 e os 500 euros para os casos de incumprimento – e entre 1000 e 5000 euros para pessoas coletivas. No entanto, de acordo com a proposta de lei apresentada, não será aplicada qualquer coima a quem não possua um telemóvel com capacidade para instalar a aplicação. E_é esta uma das medidas que muitos consideram precisa de ser revista. Ao i, Pedro Moniz Lopes, professor de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, admite considerar a aplicação inconstitucional e sublinha as falhas que nela existem.
“Há uma situação de discriminação. Não faz sentido, à luz da Constituição, aplicar coimas a quem tenha telemóveis que suportem a aplicação e não a use, e não aplicar a quem não os tem. Posso simplesmente livrar-me do meu telemóvel ou nem sequer usar. E, portanto, livro-me das coimas”, começou por dizer, deixando ainda claro que existe ainda um problema adicional. “Tem de se falar também do direito de não ser georreferenciado. A aplicação terá certamente mecanismos de georreferenciação e aí já estamos a falar de uma questão de proteção de dados e de outra questão, mais ampla, de liberdade – uma liberdade de andar anónimo”, atirou.
Segundo Pedro Moniz Lopes, em termos constitucionais, uma medida só é legítima restringindo direitos fundamentais se estiver apta a satisfazer o coletivo, algo que considera não acontecer com a StayAway Covid. “Não me parece que vá ter um grau de certeza de redução da propagação comunitária. A lógica da Constituição é que quanto maior a certeza em relação à diminuição da propagação sanitária, mais justificada está a restrição ao direito da liberdade. Neste caso, não tenho grandes dúvidas de que isso não acontece”, concluiu.
De acordo com Bruno Castro, CEO da VisionWare, empresa especializada em Cibersegurança, esta aplicação traduz um "impacto negativo" na segurança individual e coletiva. "Ao instalar uma aplicação cujo funcionamento se desconhece, posso estar inadvertidamente a abrir mão do meu bem mais precioso: a minha informação. Ou seja, o que aqui está em causa é a segurança dos seus utilizadores, que vai muito além das informações de saúde registadas. É de conhecimento público que muitas aplicações acedem abusivamente à nossa agenda, galeria ou localização (entre outros), sem qualquer necessidade face o seu propósito. Tal pode ter implicações graves na vida das pessoas, sobretudo se levado a cabo por agentes mal intencionados", sublinhou, acrescentando ainda que é necessário avaliar a segurança da StayAway Covid.
"É absolutamente essencial que esta aplicação seja auditada, por entidades idóneas e imparciais ou empresas privadas especializadas em cibersegurança, para atestar a sua segurança", concluiu.
Medida “aceitável” em tempos difíceis
O primeiro-ministro, António Costa, adiantou que vai mobilizar a Guarda Nacional Republicana (GNR), a Polícia de Segurança Pública (PSP), a Polícia Marítima e as polícias municipais para a fiscalização da aplicação nos telemóveis, caso a medida seja aprovada na Assembleia da República, a 23 de outubro. Sabe-se que, de acordo com a proposta de lei, esta obrigatoriedade abrange “em especial os trabalhadores em funções públicas, funcionários e agentes da Administração Pública, incluindo o setor empresarial do Estado, regional e local, profissionais das Forças Armadas e de forças de segurança”. Mas o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, já admitiu levar a obrigação da StayAway Covid à revisão constitucional.
Ao i, o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, porém, sublinhou que não acredita que esta medida seja inconstitucional, reforçando o facto de se tratar de uma norma que é necessária nesta altura. “É a Assembleia da República que vai legislar e, portanto, neste caso trata-se de legislar restringindo um direito, que é o direito à privacidade. O direito não fica aniquilado, fica apenas limitado em certos contextos. Isto não se aplica em todo o lado, é apenas em contextos específicos. E não é uma restrição caprichosa, é em nome da defesa dos direitos dos outros. Perante uma ameaça grave, acho que é aceitável, porque isto da covid-19 não é um capricho. Além disso, considero ser uma medida de coragem”, confessou. E, tendo em conta a “gravidade da situação no que diz respeito à pandemia”, o constitucionalista Jorge Miranda concorda e reforça ao i que o Governo tem de optar por estratégias que vão ao encontro das dificuldades sanitárias do país.
“Em termos gerais, são medidas muito graves para uma situação gravíssima que Portugal está a atravessar. Portanto, é uma certa adequação das medidas do Governo, que quer tomar em consonância com a gravidade da situação da saúde do país. Acho que não viola a Constituição. São imposições muito fortes que precisam de ser tomadas neste momento, devido ao que estamos a viver”, rematou.
A aplicação StayAway Covid, cuja obrigatoriedade já foi chumbada pela Comissão Nacional de Proteção de Dados, foi lançada a 1 de setembro, recorde-se, e através da proximidade física entre telemóveis, informa os utilizadores que estiveram, nos últimos 14 dias, no mesmo espaço de alguém infetado com o novo coronavírus.