Nunca, que me lembre, a Faculdade de Direito de Lisboa (FDL) me proporcionou uma sensação distendida e agradável.
Tudo nela, a começar pelas paredes, era cinzento.
Quando a frequentei, reinava aí o terror imposto pelos «gorilas» – espécie de bando para-policial ligado à PIDE – que vigiava, revistava, reprimia e espancava os alunos, especialmente os que procuravam contestar o regime fascista então vigente, a guerra colonial e o atraso pedagógico de muitos métodos administrativos e de algumas aulas ali ministradas.
Poucos eram ali os docentes de inspiração democrática ou sequer liberal.
A maioria dos outros, sendo embora profundamente conservadores, procuravam, contudo, manter um nível científico e uma qualidade de ensino convenientes e, em alguns casos, mesmo notáveis.
Raros eram os que, verdadeiramente, não reuniam qualidades científicas e pedagógicas; mas alguns existiam e, destes, alguns exerceram funções diretivas durante o período mais negro daquela instituição com o apoio permanente dos «gorilas».
Muito do que aconteceu depois na FDL se lhes deve.
A crítica mais grave que, no entanto, se pode assacar à generalidade dos membros do corpo docente da DFL é terem consentido complacentemente – ao contrário do que aconteceu com os docentes de outras faculdades – com a presença e a ação terrorista dos «gorilas» no espaço académico.
E isto, mesmo depois de uma das suas Professoras mais ilustres ter sido também enxovalhada pela alarve “gorilaria”.
Houve exceções e honrosas, mas poucas, muito poucas.
Depois da revolução, vingou, entretanto, na FDL uma paródia polpotiana, orquestrada e dirigida por um partido de inspiração maoista, mas em tudo diferente de outos da mesma linha ideológica; uma força que conquistou o poder propondo passagens administrativas para todos.
Na altura, foram, ainda, saneados, em assembleias gerais, cujo acesso nem sequer era controlado, e através de votações aleatórias e de braço no ar, quase todos os professores e mesmo alguns alunos.
Entre os docentes saneados contavam-se, como afronta inaceitável ao novo regime democrático, três conselheiros de estado.
Rapidamente, passou a impedir-se também, pela força, a divulgação de outras ideias e a reunião de outras forças associativas e políticas estudantis.
Num momento de loucura varrida, houve mesmo quem tivesse hasteado a bandeira do movimento estudantil de tal partido na frontaria da faculdade e a saudasse protocolar e cerimoniosamente antes de aí entrar.
Nesse período, a repressão da expressão plural de pensamento e a da liberdade de reunião não era, portanto, menos efetiva ou benévola do que no período anterior.
Alguns políticos nacionais, hoje de nomeada, e alguns até em aberta e recente ascensão, bem como alguns advogados mediaticamente conhecidos, bem-falantes e sempre muito críticos do funcionamento das instituições democráticas foram, na altura, os comissários rigorosos pela instauração e manutenção de tal ambiente na FDL; situação que, diga-se, não encontrou paralelo em qualquer outra faculdade do país.
Depois do 25 de novembro, alguma direita que, por estratégia desestabilizadora, deixara alimentar aquela situação, passou, também, a repudiar o apoio a tal paródia polpotiana e, sob a égide da Professora Magalhães Colaço, e em conjunto com as forças estudantis democráticas e de esquerda, procurou refundar a FDL.
Mas a memória dos que foram saneados inicialmente não se esvanecera e alguns desses – generosamente convidados, entretanto, a regressar – nunca perdoaram o que lhes sucedera.
Em breve, muitos docentes competentes e democratas, recrutados, depois, na dita fase de refundação da FDL, foram sendo sucessivamente afastados, por não lhes terem sido facultados os justos títulos académicos de que necessitavam para continuar a ensinar.
A FDL quase reencarnou, assim, o espírito inicial.
Na sequência destes e doutros acontecimentos, ocorreu, inclusive, uma dissidência no corpo docente da FDL, que deu origem à Faculdade de Direito da Universidade Nova e que arrastou consigo inúmeros professores de mérito, desde os mais antigos aos mais novos que já se não reviam na casa mãe.
Em todo o caso, o que se pode afirmar com alguma verdade é que, no essencial, sempre o ensino que na FDL se ministrou, pela capacidade e força de trabalho de alguns dos seus docentes e pela coragem e inovação de outros, foi respondendo com rigor às necessidades da nova sociedade que se foi formando em democracia.
Pode-se criticar, é certo, o conservadorismo de alguns programas e conteúdos pedagógicos, o retrocesso sempre ensaiado e os excessos nos sistemas de avaliação de alguns docentes e -como se comentava intramuros – uma renovação do corpo docente assente, aparentemente, em privilégios e dinastias familiares.
Houve, inclusive, um relatório de auditoria do Tribunal de Contas não muito abonatório para a então gestão da faculdade e para o (in)cumprimento dos deveres académicos de alguns docentes.
Houve tudo isso, mas nada se assemelha ao que os jornais agora contam sobre o conteúdo de alguns programas e os temas de algumas disciplinas ministradas por um certo docente.
Existe – e bem – autonomia universitária e um sistema de autogoverno da universidade e das faculdades, mas estas, pelo menos as públicas, são pagas com dinheiro do Estado – isto é, de todos nós – e devem, por isso, também elas, prestar contas às instituições democráticas da república.
É, pois, exigível que uma tal situação seja averiguada e explicada cabalmente, apurando-se, transparente e publicamente, todas as responsabilidades.
O Estado democrático não pode condescender com quem o ataca de forma tão direta e contundente, usando para tanto uma instituição pública.
As universidades devem ser os pilares da democracia e não os seus algozes.