Manual do crime


Em 2009, no auge da crise bancária, o Governo entendeu lançar uma nova geração de PPP rodoviárias. O TdC rejeitou. O Governo não se conformou.


A talho de foice da nomeação do juiz-conselheiro José Tavares para Presidente do Tribunal de Contas ressurgiu o escabroso caso das PPP de 2009, o qual consistiu numa criminosa delapidação do património público que tem reflexos até hoje. É inenarrável que esse gigantesco processo não esteja resolvido ou sequer em vias de o ser. Não consta que haja arquivamento ou acusação, apenas uma década de penosa espera, entre comissões de inquérito e um rol interminável de notícias que, a par do que foi conhecido à época, adensam a suspeita e mutilam a confiança dos cidadãos na justiça.

Todos já ouvimos, em traços gerais, a história. Eu próprio já a contei vezes sem conta no parlamento para testemunhar como 10 anos volvidos ainda estamos pendurados nessas decisões. Vale a pena fazê-lo uma vez mais.

Em 2009, no auge da crise bancária, do défice e da dívida, o Governo PS entendeu que se devia lançar uma nova geração de PPP rodoviárias, em forma de subconcessões, da qual a requalificação da EN-125 era a mais sonante. Manda o bom uso de dinheiros públicos – e, já agora, a lei – que a alocação de risco de uma PPP seja distribuída entre Estado e particular de acordo com quem domine melhor esse risco. Por exemplo, o Estado assume o risco das aprovações administrativas e o privado o da observância técnica da obra que realiza. Sucede, todavia, que um dos riscos que sempre corre pelos privados, o do financiamento, foi, nesta ocasião, alocado ao público. A razão esgrimida pelos privados foi a de que em 2009 as taxas de juros registavam um crescimento brutal e que assumir esse risco poderia diminuir a sua rentabilidade ou, em caso de não se conseguirem financiar, constituí-los na obrigação de indemnizar o Estado por incumprimento. O Governo, ávido de obra, aceitou. O TdC, a quem os contratos tinham que ser submetidos para obtenção de visto prévio, rejeitou, por entender que o programa contratual era gravemente lesivo para os cofres públicos em razão do risco de financiamento correr por conta do Estado. Ora, o Governo não se conformou. Reviu o modelo do contrato e perversamente reinscreveu a cláusula que tinha sido objeto de rejeição do TdC num anexo, anexo este que não foi submetido à apreciação do tribunal, embora acordado com os privados.

Vilipendiar um tribunal figura como um dos mais vis e descarados atentados contra o interesse público de que me recordo. Quem o fez, como Sócrates e Paulo Campos, não pode ter lugar na vida pública.

Há quem acuse o TdC de ter participado na construção deste embuste. Não posso crer, seria bem mais grave do que os episódios que estamos a testemunhar a respeito de Rui Rangel.

Seja como for, o contrato, sem anexo, foi visado e as obras avançaram. Dois anos volvidos, o memorando de entendimento da Troika estabelecia a renegociação das PPP. Foi o que o Governo Passos Coelhos encetou, nuns casos concluídas com sucesso, outras nem tanto, como estas subconcessões em que o privado não estava disponível para negociar com base nos contratos visados pelo TdC.

Mas o mais grave é que todo este esquema foi desmascarado em 2018. O Governo Costa para concluir a renegociação da EN-125 entregou uma renegociação com base nos anexos – constando os famigerados pagamentos contingentes – e não com base no contrato visado.

O TdC indeferiu liminarmente.

Entretanto, o privado intentou uma ação contra o Estado, pedindo 400 milhões de euros… e a obra nem sequer está concluída, o Governo manifestou a sua intenção de a resgatar.

Resta saber o que se passa com as restantes PPP nestas condições, as quais têm um valor acima de 2,5 mil milhões de euros e comungam dos mesmos pecados mortais.

As péssimas decisões têm vida longa e muitas delas são verdadeiros manuais do crime.

Deputado