Não é à toa que referi a tradutora, é que pela primeira vez na vida senti um desejo absurdo de ler um livro na sua língua original. Não porque não esteja soberbamente traduzido, mas pela possibilidade de me sentir de alguma maneira mais dentro dele, ou na verdade, o que talvez tenha sentido, foi a urgência de mergulhar num dialeto só meu, como o das personagens mais vivas e dilacerantes desta história, para que como elas, pudesse mastigar uma linguagem única, exclusiva. Única e exclusiva no sentido de ser mais íntima, mesmo que agressiva, ordinária ou por vezes peganhenta. Este meu sentimento é muito idêntico ao da própria Giovanna, a personagem principal deste romance, que ao ouvir Vittoria, a sua indomável tia falar com outros primos seus fica estupefacta e confessa ter pena de não fazer parte daquele círculo restrito apenas reservado para alguns (p.78) «Que pena eu ter sido a última a chegar, não ter a linguagem que eles tinham, não ter uma verdadeira intimidade.» Intimidade, no fundo é a isto que se resume a obra de Elena Ferrante. Intimidade com a linguagem, com o sexo feminino, com o sexo do sexo feminino, as bonecas, a casa, a mentira. É difícil a intimidade com a linguagem, muito difícil, porque é só por ela que nos chegam as confidências, as dúvidas, a dor, alguma felicidade. Mas, uma vez mais, a autora resolve brindar-nos com a linguagem dialetal napolitana, apresentando-a como um trunfo de dois naipes, um trunfo valioso e incondicional, mas sujo e pouco polido na maioria das vezes. O dialeto é em Ferrante, a linguagem na cruz. É o afeto e o ataque, o gelo e a denguice, e facilmente somos capazes de ouvir o seu eco em refrão em alguma fala de Vittoria, Giuliana, Corrá ou Tonino.
Mesmo repetindo temas, cenários, perfis de personagens, até nomes de personagens (Enzo, Gianni, Nella), Ferrante é incapaz de se esgotar. É incapaz de se esgotar simplesmente porque a órbita Ferranteana é uma órbita que emociona. Claro está, que quem tenha lido os seus outros romances ou crónicas facilmente lhe encontra vestígios, sombras e imagens que já lhes eram familiares, mas é bom que o leitor as reveja, se envolva nelas, se deixe misturar. É bom que se sinta barricado, se confunda, se deixe ensombrar, porque às vezes é preciso que as narrativas se repitam para que façam sentido.
Neste livro, Nápoles continua a ser o pano de fundo cénico com os mesmos bairros, a zona industrial, as mesmas ruas, o mesmo funicular, a mesma inquietude. Mesmo quando a autora não elabora um relato explícito do espaço atual, ela tendencialmente nos sugere quase em confidência, a vaga lembrança de outras referências capazes de nos fazer enquadrar na perfeição ali, bem naquele exato lugar onde ela nos quer, e esse lugar nós já conhecemos bem de outras viagens, (p.75)«Certamente por aquelas ruas houvera uma pastelaria, uma alfaiataria, (…)» Mas nesta Nápoles, vamos encontrar Giovanna, uma jovem rapariga que vive obcecada em descobrir o paradeiro de Vittoria, sua tia paterna, há muito drasticamente afastada dos seus pais. Vittoria é uma mulher áspera, destemida, imprevisível, cheia de histórias, dissabores e mistérios. É uma mulher ostracizada pelos pais de Gianni, como esta carinhosamente lhe chama desde o inicio, mas a partir do primeiro encontro entre as duas, nada será igual. Depois disso, a vida familiar de Giovanna irá desmoronar por completo e cedo ela irá provar o sabor glaciar da mentira, mas para desgosto e preocupação dos seus pais, Andrea e Nella, dois intelectuais ateus de classe média, a jovem vai encontrar nesta tia o outro lado do espelho, e é também pelos olhos sofridos e melífluos desta mulher que nós vamos conhecer o lado descarnado de Nápoles ao volante do seu cinquencento podre, bem como o cemitério onde está enterrado Enzo, o seu único amor de toda a vida partilhado com Margherita com quem Enzo já tinha três filhos. É Vittoria, esta mulher extraordinariamente fora do baralho, que como um íman vai hipnotizar Giovanna e ensiná-la a ver a vida por outro gume. É ela quem a adverte várias vezes para ter cuidado com a ilusão, a superfície, as aparências «olha para eles, os teus pais, olha bem para eles, não te deixes enganar.» Esta frase é várias vezes repetida e por isso assustadora, mas é também assustadora e brilhante a definição que Giovanna faz de Vittoria: «Vittoria pareceu-me de uma beleza tão insuportável que considerá-la feia tornava-se uma necessidade.» (p.41) Quantas vezes teve o leitor de considerar alguma coisa estranha ou em desequilíbrio na sua vida, de tão avassaladora que essa pessoa era, ou de tão inesperado, drástico e imprevisível o rumo que essa situação tomou? Mas a verdade é mesmo essa, e às vezes é necessário que assim seja. Às vezes, é necessário que seja feio, feio drástico e insuportável.
Em todos os romances desta escritora italiana, a temática acaba por ser a mesma sim, as mesmas dualidades, os mesmos mundos contrapostos, a literatura em confronto com a vida rotineira, a vida rotineira feita de pequenos hábitos e sonhos desfeitos, desgostos, capazes de tornar rotineiros, pequenos e desfeitos qualquer adulto que seja. Que raio de adulto somos afinal, se aquilo que se sonha não é o que se enterra, se o que se colhe não foi o que semeou, se o que se semeou foi pura mentira?
Acredito que não deve existir uma mulher que não se reconheça nesta história. Não deve haver uma mulher que não se reveja em Giovanna, nas suas amigas Ângela, Ida ou Giuliana, ou nas suas mães, ou mesmo em Vittoria. Quem já leu os outros romances não consegue varrer de Vittoria, a mãe de Lila de A Amiga Genial, não pode deixar de recordar Nino na figura de Roberto, encontra facilmente vestígios de Donato Sarratore em Mariano, por exemplo ou de Mariarosa em Ângela. Quem leu A Amiga Genial, não consegue deixar de comparar os diálogos efervescentes de Lila e Pasquale revisitados nos de Roberto e Giovanna, ou de se lembrar do conto A Fada Azul de Lila assim que Ida lhe começa a ler o seu conto infantil, ainda que seja um conto que de infantil não tivesse absolutamente nada.
A meu ver, em todos os livros de Elena Ferrante a parte do dialeto, há outro elemento predominante comum a todos, a boneca, e quando digo comum a todos, refiro-me ao estreito e latejante lugar da Infância. É na realidade sempre a mesma boneca e a mesma infância, mas uma boneca multifacetada, reinventada em cada história. Em A Amiga Genial a boneca é um nervo central do vínculo entre as amigas Lila e Lenú. Cada uma tem a sua própria boneca, e cada boneca reflete o temperamento de uma e outra amiga. Se logo no início as bonecas são atiradas por um velho mau, Dom Achille para o fundo das escadas da cave do prédio, em A Praia de Noite, a boneca é esquecida na praia pela pequena Mati, e perseguida por outro velho mau idêntico a Dom Achille, mas aqui na figura do Banheiro Cruel do Sol-Posto. Por sua vez, em A Vida Mentirosa dos Adultos a boneca aparece na mesma como um vínculo entre as personagens Giovanna e Ângela, mas envolta num cariz sexual. (p.26) «Tinha uma lembrança muito agradável das brincadeiras com Ângela, no sofá da minha casa, quando diante do televisor ligado, nos deitávamos, uma de frente para a outra, entrelaçávamos as pernas e, sem fazer ajustes, sem regras, em silencio, instalávamos uma bonequinha entre o entrepernas das minhas cuecas e o entrepernas das dela, e depois esfregávamo-nos, contorcíamo-nos sem a menor atrapalhação, apertando com força entre nós a boneca , que parecia cheia de vida e feliz.» Talvez a autora se tenha desta vez munido da boneca para concretizar o toque carnal entre estas duas amigas, já que em A Amiga Genial isso nem de perto aconteceu, embora Lenú uma vez tenha desejado Lila fisicamente, ao prepará-la para o dia do seu casamento com Stefano Carracci. No fundo, podemos chegar à conclusão que a boneca em A Amiga Genial era uma boneca cheia de sonhos e incertezas, em A Praia de Noite a mesma boneca é cerzida de esperança e determinação e em A Vida Mentirosa dos Adultos essa boneca, embora erotizada, atinge o clímax da fantasia infantil tão profundamente inflamada nesta obra. Para concluir, podemos dizer que em A Amiga Genial a boneca é carregada de infância, em A Praia de Noite é carregada de palavras e coragem e por fim em A Vida Mentirosa dos Adultos é despida de pudor e carregada de mentira, se bem que uma vez mais, também a mentira é algo predominante e reconhecível nos anteriores romances. A mentira dos casamentos, a mentira da homossexualidade de Alfonso, a mentira dos negócios e do dinheiro, a mentira da política e dos poderosos. A mesma boneca, a mesma infância, a mesma mentira. Ler a obra desta escritora é sentir-lhe no pulso o sangue de todos os personagens, que no final de contas são sempre os mesmos, feitos da mesma levedura e da mesma desarmonia.
Além da boneca, podemos também encontrar aqui ancorado um outro elemento fulcral na história, a pulseira. Se em A Amiga Genial, os sapatos Cerullo eram sinal de ruína, aqui, a pulseira tem o mesmo ardor, a mesma ruindade e é revestida da mesma tragicidade. Tudo é posto em causa neste romance, acredito que até talvez o dialeto sirva estrategicamente para Elena Ferrante pôr em causa a própria linguagem. Pensar o Evangelho como uma história feia, foi a meu ver das passagens mais comoventes deste livro. «Deus está ausente» (p.171) ou «Deus não é fácil» (p.210). São diálogos destes que me prendem siderada a esta escritora:
“«A obrigação para com Deus vale a pena. Gostas de poesia? (…) A poesia é feita de palavras, exatamente como a conversa que estamos a ter. Se o poeta agarrar nas nossas palavras banais e as libertar desta conversa, então elas, do âmago da sua banalidade, manifestam uma energia inesperada. Deus manifesta-se do mesmo modo. (…) Deus é isso: um abanão num quarto escuro, do qual já não encontro o chão, as paredes, o teto. Não há nada para falar, não há nada para discutir. É uma questão de fé. Se acreditas, funciona. Senão, não. (…) Os mistérios não se compreendem.»” As mentiras estou certa que também não, mas se recuarmos a 2018 a uma crónica escrita por Ferrante no The Guardian, reunida mais tarde no livro A Invenção Ocasional lemos que «a mentira nos concede em certos casos uma espécie de tréguas.» Nem de propósito essa crónica se chamava pura e simplesmente, Mentiras.