Sempre gostei de obituários. Sobretudo de pessoas que ficaram conhecidas no seu tempo, embora os obituários de anónimos – que também os têm, só que em ambiente mais reservado, e admitindo que hoje ainda há alguém anónimo, o que não é certo – também tendam a seguir o mesmo diapasão. Deve ser por gostar de História e de Fantasia que aprecio obituários, pois estes costumam, salvo exceções, conjugar muito bem as duas coisas. Quem foi tendencialmente bestial, depois de morto passa a ser ainda mais bestial, mesmo não sendo tecnicamente possível subir degraus em bestial, mas a morte tudo permite. Quem não foi, torna-se logo bestial ou candidato a. E quem foi menos bom ou mesmo uma besta, maior ou menor, e salvo casos muito chocantes, vê realçados os seus pontos melhores, em detrimento dos piores, e/ou estes são mesmo esbatidos sob uma generosa sombra. Viver é perigoso, já se sabe, dá críticas, invejas, azedumes, julgamentos, pedradas, más palavras. Mas morrer, além de fácil, não é nada perigoso, pois quase sempre gera encómios, elogios, ou pelo menos amorosos ou convenientes esquecimentos. Mortos somos todos bons, ou quase todos. Herberto Helder, em “Apresentação do Rosto”, escreveu: “Não é possível meter uma moeda, ouvir uma voz, e dizer: dê-me tempo, nome, inteligência, amor”. Tretas, diria eu ao Poeta, se pudesse. Isso não é possível em vida; mas depois de morto, ah aí é outra coisa, é quase sempre uma alegria…
João Botelho, em entrevista recente à Visão, disse: “Há uma definição de cinema de que eu gosto muito: luzes e sombras e seres humanos aflitos no meio”. Belíssima definição de cinema, pareceu-me, e gostei de ler – aliás, gostei da entrevista toda, diga-se. E tocou-me, não só porque gosto muito de cinema, mas também porque o cinema (e outras coisas, numa infinita intertextualidade) me tem ajudado a tentar compreender a vida, e a mim nela. Ora, essa definição de cinema calha também muito bem como definição da vida: luzes e sombras, e gente aflita no meio. E tudo termina num obituário, onde desaparecem as sombras, e quase sempre só ressalta a luz. E, melhor ainda, o visado deixou para trás toda a aflição, uma vez que morreu. Deve ser por isso que, eufemisticamente, se costuma dizer quando alguém morre que “foi desta para melhor”. Não é por humor negro, creio, nem será sequer para acentuar a visão trágica da vida como um vale de lágrimas. Simplesmente, é porque cessou a aflição, e sobretudo porque um morto tem direito a um caloroso obituário, onde normalmente só dizem dele coisas boas. Pena é que já não esteja cá para apreciar tamanha e luminosa generosidade dos outros, que em vida lhe não tributaram tanto elogio, nem tal compreensão (ou mesmo esquecimento) pelos seus lados mais sombrios. Mas não se pode ter tudo, e deve ser um grande consolo saber que depois de mortos tenderemos a ser bestiais. Não tenhamos, porém, pressa em morrer, mas, mesmo que não haja vida para além da morte, pelo menos a umas palavrinhas fantásticas de obituário quase ninguém escapa. Ámen.
Escreve quinzenalmente à sexta-feira