Arrastado para uma guerra pela ex-mulher, agora já se pode dizer que a vida de Dan Brown dava um livro

Arrastado para uma guerra pela ex-mulher, agora já se pode dizer que a vida de Dan Brown dava um livro


Depois do divórcio em 2019, e de dividirem a fortuna feita com “O Código Da Vinci” e outros títulos, Dan Brown e a ex-mulher engalfinharam-se numa batalha judicial que mete acusações de infidelidade, milhões escondidos, outros gastos com cavalos, desses puro sangue, um deles chamado Da Vinci.


Com o seu talento para a chalaça, Alexandre O’Neill pintou uns bigodes na conhecida expressão inglesa, e de best-seller tirou as bestas céleres que mal param para ruminar nas suas debandadas constantes, essas obras cujo enxame de letras, como moscas de volta de cadáveres irresistíveis, cultiva audiências vastíssimas, tantas vezes recorrendo a fórmulas bastante convencionais, puxando pela crendice e a superstição, sacudindo o folclore, levando os dedos à garganta da religião e dos mitos, seja para levantar uma tempestade de pó entre os mais velhos e pesados volumes, seja para gerar uma boa dose de escândalo. Ora, ninguém aperfeiçoou melhor este regime do que Dan Brown, que desde que alcançou a fama mundial com “O Código Da Vinci” tornou-se o sumo pontífice deste rendoso culto, conhecido pelos sinuosos enredos, que atiram a atenção do leitor do cimo de um lance de escadas após outro, em percursos cheios de adrenalina. Para além de diluir colheres de água benta na mucilagem de uma prosa viscosa, de espicaçar a propensão conspirativa que há em nós, recorre a todos os truques do manual, envolvendo espelhos e fumos, uns pós de criptografia e simbologia, o isco de mulheres inteligentes, imensamente apetecíveis, e guia os leitores nesses intrigantes meandros dos cultos religiosos, povoando as sombras de uns fanáticos raivosos sempre a ver se cozinham um apocalipse qualquer. Mas se estas sagas maníacas são boas para essas frequências mediúnicas necessárias para recolher a atenção dispersa e algo fantasmagórica da maioria dos leitores, a leitura dos clássicos continua a ser a mais fiável das bolas de cristal, e há aquela frase erroneamente atribuída a Shakespeare que nos diz que “não há no céu fúria comparável ao amor transformado em ódio, nem há no inferno ferocidade que se compare há de uma mulher desprezada”. A última parte desta frase deu a origem a um provérbio, como tantos que foram arrancados da obra do grande bardo, correndo nos fontanários das praças públicas, mas esta é de um outro William, Congreve, que nasceu quase meio século depois de Shakespeare. Ainda assim, se o povo se apropriou da frase é pelo sua rima interna com a experiência. E Dan Brown parece ter-se dado conta de que, apesar dos seus arrevezados enredos, em que Céu e Inferno passam por parques de diversões, não se aprende grande coisa sobre a ebriedade que põe o amor e o ódio a um passo um do outro, e foi assim que, depois de ter posto termo, em 2019, ao casamento de 21 anos com Blythe Brown, o que o obrigou a entregar-lhe metade da sua fortuna, viu-se agora arrastado de novo para os tribunais, numa batalha legal que a ex-mulher garante que se prende com princípios morais e não com um esforço para ir buscar mais uns milhões.

Numa queixa que deu entrada num tribunal de New Hampshire, Massachusetts, no passado mês de julho, Blythe, de 68 anos, alega que Dan, que tem hoje 56 anos, deturpou o valor real dos seus bens durante o processo de divórcio, fazendo segredo sobre um conjunto de projectos que tinha na calha, incluindo uma série de televisão, uma MasterClass e um livro para crianças que acaba de ser editado em Portugal com o título “A Sinfonia dos Animais” (ed. Bertrand). Este livro demarca-se dos sete thrillers que, colectivamente, venderam mais de 234 milhões de exemplares em todo o mundo, e que fizeram de Dand Brown um multimilionário. Aqui, o protagonista é um rato, que tem a particularidade de ser um maestro e que recruta um conjunto de animais, que nos surgem soberbamente ilustrados por Susan Batori, reunindo-os numa orquestra em que cada animal contribui com uma lição ou provérbio sobre virtudes como a persistência, a paciência e a cooperação. Além dos desenhos e dos poemas que os acompanham, para não fugir à sua paixão de infância, Brown tem códigos escondidos pelas páginas, e cada um deles dá acesso a um tema individual para cada animal. Tratam-se de composições que o autor de best-sellers criou há mais de 30 anos, quando aquilo que ambicionava era ser compositor de música clássica. De resto, ainda que as composições apareçam adaptadas à infância, sendo o público-alvo do livro crianças entre os 3 e os 7 anos, detetam-se nelas as influências dessa anterior encarnação de Brown, com homenagens a autores como Saint-Saens.

Da primeira vez que foram registadas, Brown gravou estas músicas usando sintetizadores num minúsculo estúdio caseiro. Fez 500 cassetes acompanhadas de um livrinho com os poemas e deixou-os em consignação na livraria que frequentava. Agora, o álbum que acaba de lançar apresenta versões originais e algumas novas, todas executadas e gravadas pela Orquestra do Festival de Zagreb na Croácia. Quanto às receitas que “A Sinfonia dos Animais” venha a gerar, Brown fez já saber que, pelo menos aquelas que forem geradas nos EUA, irão reverter para um programa de ensino musical dirigido aos mais novos. Numa entrevista ao “The New York Times”, disse que o processo de escrever uma canção ou uma peça de música clássica não difere assim tanto da escrita dos seus romances, lembrando que é preciso controlar a estrutura, a capacidade de criar tensão e depois soltar, aliviá-la. “As boas linhas musicais fazem uma pergunta e dão uma resposta. Não se pode ter cinco cenas de perseguição de seguida, do mesmo que não podes fazer suceder cinco fortissimos. Precisas desse material intersticial para dar ao ouvinte ou ao leitor margem para respirar.”

E agora que já demos ao leitor margem suficiente para respirar, voltemos à cena da perseguição, em que Blythe além de alegar que o ex-marido lhe escondeu os códigos de acesso aos proventos que viriam de projectos que estavam ainda por concretizar, garante que este levou “uma vida secreta” ao longo dos últimos anos, mantendo uma relação extra-conjugal com uma treinadora de cavalos holandesa, tendo gasto uma fortuna em presentes, incluindo dois cavalos frísios, um deles captizado Da Vinci. Quanto ao outro, trata-se de um garanhão negro, “muitíssimo cobiçado, tendo recebido uma série de prémios”. Este chama-se “Limited Edition” e terá custado 345 mil dólares (perto de 293 mil euros).

Dan Brown não se limitou a aguardar pelo seu dia em tribunal para explicar que tudo não passa de uma perseguição que tem como motivo o orgulho ferido da ex-mulher. Saindo no contra-ataque, no final do mês de julho, entrou com uma acção independente por difamação e calúnia, afirmando que a ex-mulher decidiu “envergonhá-lo publicamente” e “destruir o seu legado”. Numa recente entrevista, Brown garante que qualquer alegação de que tentou “esconder dinheiro é absolutamente falsa”, e diz que ficou estarrecido por a mulher ter optado por lançar sal sobre a ferida e destruir a memória de um casamento que, segundo ele, foi um verdadeiro sonho antes de esfriar. Brown garante que, desde 2014, a união apenas resistia no papel.

“Fomos um casal maravilhoso por muito tempo”, recorda Brown, adiantando que tinha imenso respeito por Blythe e que era alguém que em tempos amara profundamente. “As pessoas evoluem de forma diferente. Começámos a viver vidas separadas, e era assim já há uns anos. Chegara a altura de pôr um fim à relação, e ela concordou com isso. Por isso esta reacção dela foi um choque total para mim.” O escritor sempre reconheceu que a ex-mulher foi crucial no seu sucesso, apoiando-o e ajudando na pesquisa e na revisão dos seus livros. Foi Blythe quem o persuadiu a explorar a ideia do sagrado feminino, o Santo Graal e Maria Madalena. “Foi ela quem me motivou a escrever um thriller que fizesse Maria Madalena emergir das sombras”, reconheceu Brown. “Na altura, a minha primeira reacção foi pensar que a ideia não fazia o menor sentido, que só um tolo iria mexer nesses lençóis.” Depois da publicação de “O Código Da Vinci”, em 2003, e do seu triunfo arrebatador, as coisas azedaram, com a fama e os milhões a terem um papel corrosivo na relação. Brown diz que o afastamento foi mútuo, e que Blythe começou a dedicar-se cada vez mais ao hipismo, e à prática de adestramento. Foi ela, inclusivamente, que o apresentou à treinadora holandesa. E agora que Blythe lhe declarou guerra, Dan Brown pediu ao tribunal que revelasse o acordo do divórcio e referiu que ela gastou mais de 10 milhões de dólares com “os seus cavalos, projectos equinos e companheiros nesse seu entusiasmo”. 

Depois de assistir horrorizado ao ver a sua vida íntima tornar-se tema de publicações sensacionalistas um pouco por todo o mundo, o escritor que foi uma das primeiras figuras públicas a assumir publicamente que tinha sido infectado com o coronavírus no início da pandemia, alterou a sua atitude face à guerra que lhe estava a ser movida na imprensa tabloide, e numa recente entrevista ao “The Sunday Times” disse que inicialmente ficou preocupado com a repercussão que a batalha jurídica pudesse ter, nomeadamente ao nível das vendas dos seus livros. “Telefonei ao meu editor e disse-lhe: ‘Lamento muito, espero que isto não afecte as vendas.’ Ao que ele respondeu: ‘Estás a brincar? Toda a gente acha que és o tipo mais aborrecido do mundo. Pelo menos agora há alguma coisa por onde pegar, uma história salaz para espevitar a imaginação das audiências!”